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O Decreto no. 10.003 e o (infindável) fundo do poço no controle social dos direitos da criança e do adolescente no governo Bolsonaro

Assis da Costa Oliveira

Vivemos em tempos de um governo que só sabe governar por Decretos, pois não possui a mínima articulação no Congresso Nacional para discutir os temas que pretende adotar para a sociedade e o próprio Estado. E, agora, possui ainda menos apoio da opinião pública, como mostrou a mais recente pesquisa de (im)popularidade do presidente Jair Bolsonaro, publicado pelo DataFolha[1].
Nessa onda crescente de autoritarismo, ilegalidade e total falta de transparência dos atos públicos, mais uma canetada jurídica foi dada no dia 4 de setembro de 2019, com a publicação do Decreto no. 10.003[2], por meio do qual interfere radicalmente na organização do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), o órgão colegiado responsável pelo planejamento e o monitoramento da política nacional de atendimento aos direitos das crianças e dos adolescentes.
Dentre as medidas previstas no referido Decreto, as principais são: (1) destitui (ou dispensa, como está no texto, artigo 2º do Decreto) toda a atual composição do CONANDA, incluindo todos os 14 membros da sociedade civil, e seus respectivos suplentes, que foram eleitos em processo regularmente realizado e com mandato até outubro de 2020; (2) altera a composição do órgão de 28 membros para 18, mantendo a paridade, mas retirando cinco vagas da sociedade civil; (3) definição de que as assembleias do órgão passarão a ser trimestrais, ao invés de mensais, como atualmente, e para quem não é de Brasília oportunizando somente a opção de participação por videoconferência, mas sem indicar com que condições de estrutura e comunicação para garantir essa medida; (4) estabelece que as próximas eleições dos membros da sociedade civil passam a ser conduzidas pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), retirando o protagonismo do Fórum Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, que deveria indicar os membros para composição da comissão organizadora do certamente, conforme ainda consta no artigo 2º da Resolução no. 211, de 24 de setembro de 2018, do CONANDA[3]; (5) extinção da secretaria executiva do CONANDA e vinculação deste suporte técnico-administrativo à equipe da Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (SNDCA) do MMFDH.
De todo o exposto, a medida mais gravosa é a destituição da atual composição do CONANDA. Isto porque está eivada de ilegalidades arbitrariamente estruturadas no Decreto. A primeira delas é que a Lei que regulamenta o CONANDA, a Lei no. 8. 242, de 12 de outubro de 1991, permite no seu artigo 5º que o presidente da República nomeie ou destitua o presidente do CONANDA[4], mas não a composição completa do seu colegiado e, sobretudo, não pode revogar membros que foram eleitos por processo eletivo regularmente realizado e que ainda estejam na vigência de seus mandatos. Desse modo, o Decreto faz mais do que autoriza a Lei, e, portanto, fere a hierarquia das normas, gerando a violação do princípio da legalidade presente no caput do artigo 37 da Constituição Federal de 1988.
Além disso, com este ato de destituição total da composição atual do CONANDA, o presidente Jair Bolsonaro fere também os princípios da moralidade e da eficiência, presentes no mesmo caput do texto constitucional, pois gera um prejuízo imensurável ao funcionamento do órgão colegiado – a bem da verdade, já combalido por medidas que o governo vem adotando há algum tempo, como corte de recursos, demissão de equipe técnica e inviabilização das assembleias ordinárias, que já analisei em outro texto[5] – e da própria política nacional dos direitos das crianças e dos adolescentes, isso às vésperas do processo de eleição unificada dos conselhos tutelares de todo o Brasil (marcada para 5 de outubro) e da Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, esta última que o governo pretende adiar de novembro deste ano para alguma data de 2020.
Não há uma única justificativa por parte do governo federal, seja da presidência ou do MMFDH, dos motivos de ter publicado tal Decreto e com a adoção desta destituição generalizada. A completa falta de transparência pública só acirra ainda mais o indicativo de que este é mais um ato autoritário do governo Bolsonaro, que desde a edição do Decreto no. 9.759/2019, em abril deste ano, vem sistematicamente extinguindo ou enfraquecendo os conselhos de políticas públicas, numa nítida postura de prejuízo à democracia, à cidadania e à participação na gestão estatal, como analisei em outro texto[6]. 
No Congresso Nacional, já foi protocolado o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) no. 608/2019, de autoria da deputada Maria do Rosário (PT/RS), e outro de no. 609/2019, de autoria de Ivan Valente (PSOL/SP), ambos definindo a sustação dos efeitos do Decreto no. 10.003. Mas é necessária uma ampla articulação com parlamentares que defendem a pauta dos direitos das crianças e dos adolescentes para garantir a célere tramitação deste PDL. Por certo, tal articulação deve enfrentar a resistência da Frente Parlamentar Mista pela Redução da Maioridade Penal, constituída em junho deste ano, e que tem no enfraquecimento do CONANDA uma das “oportunidades” para fazer avançar as medidas legais voltadas à redução da maioridade penal.
Não se pode perder do horizonte de análise a relação entre a primeira medida (o Decreto) e esses interesses políticos, pois o presidente Jair Bolsonaro sempre apoiou explicitamente esta Frente e certamente tem a intenção de, com esse Decreto, reduzir ainda mais a incidência política do CONANDA no Congresso Nacional. Se assim for confirmado, fere-se, novamente, a moralidade e a impessoalidade da administração pública com a realização de um ato normativo voltado à satisfação de interesses políticos contrários aos direitos constitucionalmente garantidos às crianças e aos adolescentes.
Em suma, este é mais um ato, talvez o mais gravoso, de uma série de outros que vem mostrando que no governo Bolsonaro as crianças e os adolescentes são uma das prioridades de desmantelamento acelerado dos direitos e do suporte institucional construído nos últimos trinta anos, e da maneira mais arbitrária, ilegal e não-transparente possíveis. É tempo de levar a sério os direitos de crianças e adolescente e de exigir com que o governo adote medidas qualificadas de respeito e materialização destes direitos.    

Assis da Costa Oliveira – Professor de Direitos Humanos da Faculdade de Etnodiversidade da Universidade Federal do Pará/Advogado

[3] Conforme texto legal: “Art. 2º Será instituída pelo CONANDA uma Comissão Eleitoral, composta por três representantes de organizações da sociedade civil, indicadas pelo Fórum Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente - FNDCA, com a finalidade de organizar e realizar o processo eleitoral.” Cf. https://www.direitosdacrianca.gov.br/conanda/resolucoes/resolucao-no-211-de-24-de-setembro-de-2018/view
[4] Conforme dispõe o texto legal: “Art. 5º O Presidente da República nomeará e destituirá o Presidente do Conanda dentre os seus respectivos membros.” Cf. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8242.htm