Priscila Godoy, Mestra em Direitos Humanos e
Cidadania pelo Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da
Universidade de Brasília (PPGDH/UnB), advogada e parceira da Associação Internacional
Maylê Sara Kalí publica artigo “Violência Contra as Mulheres Ciganas: Um
Racismo Esquecido” como parte da iniciativa “16 dias de Ativismo” do Comitê
Latino Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres (CLADEM
Brasil).
Leia a íntegra do artigo
Falar sobre violência contra as mulheres
ciganas é, sobretudo, falar sobre o racismo, mas um racismo esquecido e
negligenciado, que emana das relações de poder e das práticas coloniais. Os
dados são exíguos e quase inexistem pesquisas sobre o assunto.
No Brasil, calcula-se que a população cigana
seja de aproximadamente mais de meio milhão, conforme divulgação da outrora
Secretaria de Promoção e Políticas de Igualdade Racial (SEPPIR). Mesmo com essa
significativa população, quando se fala em minorias, ninguém se lembra dos
assim chamados “ciganos”[1]. Inexistem pesquisas oficiais e detalhadas sobre a
população cigana. Partindo dos dados aportados pela Comissão Europeia (2011),
mas contrastados com o informe de Jean-Pierre Liégois e Nicole Gheorghe e com o
critério de Sérgio Rodríguez (2011, pp. 72-74)[2], foi construída uma tabela
para ilustrar a distribuição geográfica da população “cigana” no mundo. De
acordo com essa tabela, o Brasil ocupa o segundo lugar no ranking mundial com
uma população estimada em 1.000.000 (um milhão) de ciganos[3], sendo
ultrapassada pela Romênia que conta com uma população de 1.850.000 (um milhão,
oitocentos e cinquenta mil) ciganos.
O Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), que é o órgão responsável pelo censo demográfico, no
Brasil, não realiza a pesquisa censitária dos assim chamados “ciganos”. Um
estudo da Associação Internacional Maylê Sara Kali (AMSK/Brasil) demonstra que
os dados gerados pela Pesquisa de Informações Básicas Municipais (MUNIC),
realizado pelo IBGE, atingem apenas os ciganos de barraca, sem distingui-los em
itinerantes ou fixos. No ano de 2014, a MUNIC identificou 337 municípios com a
presença de setenta e três acampamentos ciganos, localizados em áreas públicas
destinadas para esta finalidade. A despeito de sua importância, os dados
históricos produzidos tendem a ser distorcidos pela visão etnocêntrica e
racista[4]. A Constituição Federal de 1988 não faz menção expressa aos ciganos
que, somente a partir de 1993, passaram a constar de documentos
governamentais[5]. Em 24 de maio de 2006, o Governo Federal instituiu o Dia
Nacional do Cigano. Essa data comemorativa, inscrita no calendário oficial, é
parte de uma série de medidas destinadas especificamente ao povo cigano.
Inobstante numerosa, as comunidades ciganas no
Brasil são desprezadas pelo poder público brasileiro e, por consequência,
sofrem com o baixo acesso à educação, saúde e participação política, sendo
frequentemente alvo de estereótipos e preconceitos, inclusive pela mídia.
Às mulheres ciganas são atribuídos os mais
variados rótulos racistas, como trapaceiras (no Brasil, desde Gil Vicente, em a
Farsa das Ciganas[6]), sujas, ladras e sedutoras. Uma raça de degeneradas. A
leitura de raça aqui, portanto, se define como uma emergência histórica, porque
é adversa a toda fixação biologicista e a toda possibilidade de essencialismo,
e opera como uma emanação das relações de poder (SEGATO, 2010, p. 32). Assim, é
premente que falemos sobre a violência contra as mulheres ciganas, sobre o
racismo, mas um racismo esquecido. Evidentemente, seja como for, na gestão dos
estereótipos, a cigana representa os ciganos na totalidade.
Ainda, segundo Rezende (2000, p. 105)[7],
“várias foram as tentativas feitas no sentido de assimilar ou exterminar a
“raça” cigana”, uma “raça degenerada”: assimilar seus indivíduos, “desfazendo”
seus traços genéticos e seus costumes entre a população “saudável”; ou o
extermínio completo, eliminando qualquer herança genética.
Contudo, sem dúvida, as piores políticas
empreendidas contra os ciganos foram a de exterminação como ocorreu, por
exemplo, na Alemanha nazista. As autoridades alemãs se convenceram da tarefa de
exterminação da “raça” cigana, com base nas antigas teorias e estereótipos
criados e reproduzidos. Bem antes dos judeus, em 1933, as mulheres ciganas
começam a ser esterilizadas.
Depois da II Guerra Mundial, apesar da morte
estimada entre 220 mil a 1,5 milhão de ciganos[8], algumas políticas
desastrosas continuaram sendo empregadas em diversos países da Europa, sob o
pretexto de se utilizarem de estudos e métodos científicos no “controle” dos
grupos ciganos. Assim, por exemplo, ao longo do século passado, a Suécia
esterilizou, perseguiu, retirou crianças de suas famílias e proibiu a entrada
no país dos ciganos; e as pessoas dessa minoria étnica foram tratadas durante
décadas pelo Estado como “incapacitados sociais”. […] Os abusos históricos,
assinala o Livro Branco, seguiram um padrão criado há séculos pelas monarquias
europeias: começaram com os censos que elaboraram organismos oficiais como o
Instituto para Biologia Racial ou a Comissão para a Saúde e o Bem-estar, que
identificaram os ciganos que viviam no país. Os primeiros documentos oficiais
descreviam os ciganos como “grupos indesejáveis para a sociedade” e como “uma
carga”. Entre 1934 e 1974, o Estado prescreveu às mulheres ciganas a
esterilização apelando ao “interesse das políticas de população”, como fez
Austrália com os aborígenes. Não há cifras de vítimas, mas no Ministério de
Integração explicam que uma em cada quatro famílias consultadas conhece algum
caso de abortos forçados e esterilização. Os órgãos oficiais ficaram com a
custódia de crianças ciganas que foram arrancadas de suas famílias.
No Brasil, conforme inicialmente observado, as
pesquisas sobre o assunto, violência contra as mulheres ciganas, são
praticamente inexistentes. Sabe-se, tão-somente, que as mulheres ciganas são
vítimas corriqueiramente de racismo, mas de um racismo esquecido pelo poder
público e pela sociedade. De outra sorte, sabe-se, igualmente, que manipulam a
sua in(visibilidade), nos espaços públicos, como uma estratégia de
sobrevivência. Praticam o comércio, por exemplo, sem sua indumentária
tradicional.
De acordo com o documento divulgado em março
de 2016, pela relatora especial das Nações Unidas para minorias, Rita Izsák, as
mulheres do povo Rom[9] sofrem maior discriminação, porque são facilmente
identificadas por sua indumentária tradicional, muitas dessas mulheres se veem
privadas de seus direitos mais básicos. Esse mesmo documento recomenda a
criação de leis anti-discriminação e medidas afirmativas para endereçar a falta
de acesso à educação, saúde, habitação, emprego, redução da pobreza, acesso à
Justiça entre outros.
Ainda, para a presidenta da AMSK/Brasil, Elisa
Cavalcanti, é preciso que se saiba que os ciganos, mas, sobretudo, as ciganas
têm seus direitos desrespeitados cotidianamente como, por exemplo, o acesso ao
serviço médico dificultado[10]. Outra questão relevante apontada por Elisa é a
negativa na concessão de habeas corpus sob o argumento de que o cigano, via de
regra, não tem residência fixa.
Segundo noticiado pelo Correio Braziliense, em
13 de março de 2015, o Ministério Público Federal investiga um suposto caso de
violência policial, durante uma abordagem para apreensão de armas, em uma
comunidade cigana, próxima a Sobradinho/DF. Os moradores denunciaram que 39
Policiais Militares da Rotam entraram com bombas de efeito moral, sem mandado
judicial, na chácara ocupada por aproximadamente 50 pessoas, e cometeram uma
série de outras irregularidades, como revista íntima em mulheres sem policial
feminina na equipe.
Não à toa, o documento da relatora especial
das Nações Unidas indica em suas recomendações que se reconheçam os ciganos
como uma minoria distinta, para que possam assim exercer plenamente seus
direitos humanos, e que os Estados investiguem de forma apropriada quaisquer
crimes contra os ciganos e suas comunidades, inclusive iniciativas de
discriminação. Não há, no entanto, nenhuma recomendação que vise, especificamente,
a promoção e a defesa dos direitos humanos no que toca à violência contra as
mulheres ciganas. É preciso falar sobre a violência contra as mulheres ciganas;
é preciso falar sobre esse racismo esquecido! Na gestão dos estereótipos a
mulher cigana representa os ciganos na integralidade.
[1] Faço uso da expressão “os assim chamados
‘ciganos’” para designar o rótulo da palavra “cigano” atribuído pelo outro,
“não cigano”.
[2] RODRÍGUES, S. Gitanidad: Outra manera de
ver el mondo. Barcelona: Editorial Kairós, 2011.
[3] O termo “cigano” aqui é usado para se
referir a grupos heterogêneos, que vivem em diferentes países e sob diversas
condições sociais, econômicas e culturais, mas unidos por raízes
históricas e linguísticas comuns, conforme relatório da ONU, disponível em:
https://nacoesunidas.org/comunidade-cigana-brasileira-sofre-com-preconceitos-e-restricao-de-direitos-diz-relatora-da-onu/.
Acesso em: 06 dez. 2016.
[4] No Brasil, o Senado Federal tem em seu
arquivo histórico o Decreto nº. 3.010, assinado pelo então Presidente Getúlio
Vargas em 1.938, um ano após a instalação do Estado Novo. A norma restringia a
entrada de estrangeiros no país e impedia que “indigentes, vagabundos, ciganos
e congêneres” ingressassem em território brasileiro.
[5] O art. 2º da Resolução nº 6, de 16 de
dezembro de 1993, do Conselho Superior do Ministério Público Federal criou a 6ª
Câmara de Coordenação e Revisão dos Direitos das Comunidades Indígenas e
Minorias, incluindo-se as “comunidades negras isoladas” (antigos quilombos) e
as minorias ciganas.
[6] No Brasil, desde o século XV, a palavra
“cigano” é utilizada como um insulto (FRASER, 1992, p. 48). O termo aparece
registrado, pela primeira vez, em português, provavelmente em 1521, em A farsa
das ciganas, de Gil Vicente (TEIXEIRA, 2008, p. 09).
[7] REZENDE, D. F. de A. Transnacionalismo e
Etnicidade – A Contrução Simbólica do Romanesthàn (Nação Cigana). 2000.
Dissertação (Mestrado) – Curso de Mestrado do Departamento de Sociologia e
Antropologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte/MG, 2000.
[8] Conforme “Genocide of European Roma
(Gypsies)”. In: Holocaust Encyclopedia. United States Holocaust Memorial
Museum. Retrieved September 27, 2012. The USHMM places the scholarly estimates
at 220,000–500,000. According to Berenbaum 2005, p. 126, “serious
scholars estimate that between 90,000 and 220,000 were killed under German
rule”; e Hancock, 2004, pp. 383–96.
[9] Conforme Teixeira (2008, p. 10), Rom,
substantivo singular masculino, significa homem e, em determinados contextos,
marido; plural Roma; feminino Romni e Romnia. O adjetivo romani é empregado
tanto para a língua quanto para a cultura.
[10] Subsídios para o cuidado à Saúde do Povo
Cigano, disponível em: http://portalsaude.saude.gov.br/images/pdf/2016/novembro/10/Sa—de-Povo-Ciganos.pdf.
Acesso em: 06 dez. 2016.