A Igreja se volta para os nômades
O padre Jorge "Rocha" Pierozan, um gaúcho de Cachoeirinha que começou a vida como palhaço de circo e fez os estudos de seminário num acampamento de lona, está muito à frente das orientações que o Vaticano publicou, na semana passada, para a pastoral dos ciganos. Os limites de sua paróquia vão muito além da igrejinha da Santíssima Trindade, uma comunidade de 30 mil habitantes na Vila São Domingos, altura do Km 13 da Rodovia Raposo Tavares, onde ele circula com um chapéu de abas largas, camisa colorida, anéis nos dedos da mão direita e botas de bico fino, bem no figurino de seu povo.
Neto de avó cigana e avô italiano, um casal de imigrantes que chegou ao Rio Grande do Sul fugindo da guerra, padre Rocha ganhou esse apelido porque a torcida de seu time achou que ele era parecido com o volante do Palmeiras. Torcedor do Grêmio, bom de bola e muito engraçado no picadeiro, acabou se interessando pelas coisas da Igreja e nela descobriu que sua vocação era o sacerdócio. Ordenado em 1996, divide desde então o seu tempo entre o expediente ortodoxo e tradicional da paróquia e os acampamentos de ciganos da região metropolitana da capital.
"Segunda-feira é dia de visitar o meu povo", diz o padre Rocha, mostrando na agenda os compromissos das próximas semanas. Casamento num acampamento da Via Anchieta, reuniões nas barracas das Pontes do Morumbi e do Jaguaré, encontros em Itapecerica da Serra, Branca Flor, Jardim do Lago, Suzano, Caieiras, Utinga e Franco da Rocha, sempre a convite de ciganos de várias tribos que, em sua vida de nômades, estejam pousando por essas redondezas. "Nasci numa casa normal de uma colônia italiana, tenho só 25% de sangue cigano, mas entendo os costumes de meu povo que vive pelo Brasil afora", orgulha-se o vigário da Vila São Domingos.
Sua paróquia é referência obrigatória para os ciganos católicos, pois é ali que registram batizados e casamentos, mesmo quando as cerimônias são feitas em barracas, sempre com muito rojão e música, como eles gostam de celebrar suas festas. "É a mesma alegria quando eles vêm batizar ou casar aqui na igreja, pois não abrem mão de suas tradições", conta o padre.
Os homens chegam de chapéu na cabeça, as mulheres de longos vestidos rodados, todos cantando e rindo com seus dentes de ouro. A comunidade não cigana, os gadges, acompanha a liturgia com curiosidade e respeito - fruto de solidária convivência que, ao longo desses nove anos, nasceu ao redor do altar.
ENTUSIASMO
No Alto da Lapa, a família de Jorge e Percília Nicoli - 5 filhos, 23 netos e 3 bisnetos - recebeu com entusiasmo a notícia de que o Vaticano publicou orientações para a pastoral dos nômades, denominação que, além dos ciganos, inclui os católicos que trabalham em circos e em parques de diversões. "Fico feliz ao ver que a Igreja reconhece nossas tradições e respeita nossa identidade", disse o patriarca Jorge Nicoli, de 67 anos. Música, por exemplo, é cultura e tradição cigana que a liturgia quer preservar, conforme promete o documento publicado na terça-feira pelo Vaticano.
A pequena Stefanie, de 5 anos, que chegou à sala com sua mãe, Pattia - uma das ciganas da novela Explode Coração, da Rede Globo -, conversa com Iasmin, em români, a língua do grupo rom makthuayah, enquanto a avó Percília dança e o avô Jorge canta ao som do acordeão. Iasmin Ianov, de 12 anos, foi morar com os Nicoli para entrar na família. "Vamos educar a menina, que vai se casar com meu neto Savo, de 15 anos, daqui a 4 anos, quando ela completar 16 e ele fizer 19", disse Percília. Mais um costume cigano: os noivos são comprometidos desde meninos e se casam adolescentes, sempre com muitos dias de festa. Os pais do noivo pagam um dote, cujo valor varia de acordo com suas posses. Se não tem dinheiro, o recém-casado trabalha de graça para os sogros.
"Em muitos casos, os jovens ficam se conhecendo alguns dias antes do casamento e a cerimônia costuma ser marcada na véspera", informa o padre Rocha, apontando aí, entre muitas outras, uma das dificuldades que a Igreja enfrenta na evangelização dos ciganos. De acordo com as novas normas pastorais, "deve-se ter em conta que este (o matrimônio) está inscrito na cultura e tradição cigana com um vasto leque de rituais, dependendo do grupo a que pertencem, mas com igual caráter". Os padres abençoam os noivos, mesmo que sejam menores de idade e não possam se casar pela lei civil, que estabelece o mínimo de 18 anos para o homem e de 16 para a mulher.
"A gente dá uma fechadinha de olhos", disse frei Tadeu Luiz Fernandes, responsável pela Pastoral dos Nômades na diocese de Franca (SP). Cigano, ele dirige a paróquia de Aramina, município paulista a 30 quilômetros de Uberaba (MG), onde há uma numerosa comunidade cigana.
Num artigo para o Boletim Diocesano de Franca, frei Tadeu aconselha os padres a "não interferir em alguns pilares" que são a garantia de continuidade da raça: a) o casamento sempre dentro da própria tribo, ou sempre com alguém de origem cigana; b) a língua români, que ciganos falam; c) o nomadismo, como "resistência à globalização".
OS SACRAMENTOS
O documento Orientações para uma Pastoral dos Ciganos destaca a importância dos sacramentos para a evangelização, especialmente do batismo e da unção dos enfermos. O Vaticano lembra o valor que os ciganos dão ao batismo e aos funerais, fatos marcantes para a comunidade.
"São normas gerais, que servem para os ciganos do mundo todo, com enfoque bastante europeu", observa padre Rocha, um dos quatro brasileiros que contribuíram para a redação do texto, quando ele foi discutido em Budapeste, em 2003, no 5º Congresso Mundial da Pastoral dos Ciganos.
Na prática, os padres que dão assistência espiritual aos ciganos deparam com situações inesperadas. Por exemplo, na administração do batismo. "Alguns grupos costumam batizar as crianças mais de uma vez, uma maneira de conseguir ter compadres e comadres em cada lugar em que acampam", informa padre Rocha. O compadre assume o papel de protetor, para não deixar que os afilhados sejam hostilizados pelos moradores das vizinhanças.
O que fazer para respeitar a cultura cigana sem ferir as normas da Igreja? "Explico que o batismo é um sacramento que só se recebe uma vez na vida, mas não me recuso a abençoar a criança, mesmo que tenha de jogar um balde de água em sua cabeça", disse o padre cigano. Mas isso só no acampamento ou num grupo fechado, porque na paróquia ele faz questão de observar o rito oficial, para não escandalizar os não ciganos.
Segundo frei Tadeu, os ciganos são mais de 800 mil no Brasil e estão divididos em várias tribos: khalom, kalderashah, maktchuaayah, khoragrhaneh, gurbhetah, sinti, gadhuliyah e lovarah. O Vaticano calcula que, no mundo todo, eles cheguem a 18 milhões. Durante a guerra, mais de 600 mil ciganos foram mortos nos campos de concentração nazistas da Alemanha e da Polônia.
"Sofremos perseguição no passado e ainda enfrentamos muito preconceito", disse Jorge Nicoli. "Quando era menino, apanhei muito na escola porque, se sumia alguma coisa, diziam que era eu que roubava." Ciganos de vida sedentária e ricos preferem pagar professor particular para os filhos.
Autor: José Maria Mayrink
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/03/2006, Vida&, p. A22
O padre Jorge "Rocha" Pierozan, um gaúcho de Cachoeirinha que começou a vida como palhaço de circo e fez os estudos de seminário num acampamento de lona, está muito à frente das orientações que o Vaticano publicou, na semana passada, para a pastoral dos ciganos. Os limites de sua paróquia vão muito além da igrejinha da Santíssima Trindade, uma comunidade de 30 mil habitantes na Vila São Domingos, altura do Km 13 da Rodovia Raposo Tavares, onde ele circula com um chapéu de abas largas, camisa colorida, anéis nos dedos da mão direita e botas de bico fino, bem no figurino de seu povo.
Neto de avó cigana e avô italiano, um casal de imigrantes que chegou ao Rio Grande do Sul fugindo da guerra, padre Rocha ganhou esse apelido porque a torcida de seu time achou que ele era parecido com o volante do Palmeiras. Torcedor do Grêmio, bom de bola e muito engraçado no picadeiro, acabou se interessando pelas coisas da Igreja e nela descobriu que sua vocação era o sacerdócio. Ordenado em 1996, divide desde então o seu tempo entre o expediente ortodoxo e tradicional da paróquia e os acampamentos de ciganos da região metropolitana da capital.
"Segunda-feira é dia de visitar o meu povo", diz o padre Rocha, mostrando na agenda os compromissos das próximas semanas. Casamento num acampamento da Via Anchieta, reuniões nas barracas das Pontes do Morumbi e do Jaguaré, encontros em Itapecerica da Serra, Branca Flor, Jardim do Lago, Suzano, Caieiras, Utinga e Franco da Rocha, sempre a convite de ciganos de várias tribos que, em sua vida de nômades, estejam pousando por essas redondezas. "Nasci numa casa normal de uma colônia italiana, tenho só 25% de sangue cigano, mas entendo os costumes de meu povo que vive pelo Brasil afora", orgulha-se o vigário da Vila São Domingos.
Sua paróquia é referência obrigatória para os ciganos católicos, pois é ali que registram batizados e casamentos, mesmo quando as cerimônias são feitas em barracas, sempre com muito rojão e música, como eles gostam de celebrar suas festas. "É a mesma alegria quando eles vêm batizar ou casar aqui na igreja, pois não abrem mão de suas tradições", conta o padre.
Os homens chegam de chapéu na cabeça, as mulheres de longos vestidos rodados, todos cantando e rindo com seus dentes de ouro. A comunidade não cigana, os gadges, acompanha a liturgia com curiosidade e respeito - fruto de solidária convivência que, ao longo desses nove anos, nasceu ao redor do altar.
ENTUSIASMO
No Alto da Lapa, a família de Jorge e Percília Nicoli - 5 filhos, 23 netos e 3 bisnetos - recebeu com entusiasmo a notícia de que o Vaticano publicou orientações para a pastoral dos nômades, denominação que, além dos ciganos, inclui os católicos que trabalham em circos e em parques de diversões. "Fico feliz ao ver que a Igreja reconhece nossas tradições e respeita nossa identidade", disse o patriarca Jorge Nicoli, de 67 anos. Música, por exemplo, é cultura e tradição cigana que a liturgia quer preservar, conforme promete o documento publicado na terça-feira pelo Vaticano.
A pequena Stefanie, de 5 anos, que chegou à sala com sua mãe, Pattia - uma das ciganas da novela Explode Coração, da Rede Globo -, conversa com Iasmin, em români, a língua do grupo rom makthuayah, enquanto a avó Percília dança e o avô Jorge canta ao som do acordeão. Iasmin Ianov, de 12 anos, foi morar com os Nicoli para entrar na família. "Vamos educar a menina, que vai se casar com meu neto Savo, de 15 anos, daqui a 4 anos, quando ela completar 16 e ele fizer 19", disse Percília. Mais um costume cigano: os noivos são comprometidos desde meninos e se casam adolescentes, sempre com muitos dias de festa. Os pais do noivo pagam um dote, cujo valor varia de acordo com suas posses. Se não tem dinheiro, o recém-casado trabalha de graça para os sogros.
"Em muitos casos, os jovens ficam se conhecendo alguns dias antes do casamento e a cerimônia costuma ser marcada na véspera", informa o padre Rocha, apontando aí, entre muitas outras, uma das dificuldades que a Igreja enfrenta na evangelização dos ciganos. De acordo com as novas normas pastorais, "deve-se ter em conta que este (o matrimônio) está inscrito na cultura e tradição cigana com um vasto leque de rituais, dependendo do grupo a que pertencem, mas com igual caráter". Os padres abençoam os noivos, mesmo que sejam menores de idade e não possam se casar pela lei civil, que estabelece o mínimo de 18 anos para o homem e de 16 para a mulher.
"A gente dá uma fechadinha de olhos", disse frei Tadeu Luiz Fernandes, responsável pela Pastoral dos Nômades na diocese de Franca (SP). Cigano, ele dirige a paróquia de Aramina, município paulista a 30 quilômetros de Uberaba (MG), onde há uma numerosa comunidade cigana.
Num artigo para o Boletim Diocesano de Franca, frei Tadeu aconselha os padres a "não interferir em alguns pilares" que são a garantia de continuidade da raça: a) o casamento sempre dentro da própria tribo, ou sempre com alguém de origem cigana; b) a língua români, que ciganos falam; c) o nomadismo, como "resistência à globalização".
OS SACRAMENTOS
O documento Orientações para uma Pastoral dos Ciganos destaca a importância dos sacramentos para a evangelização, especialmente do batismo e da unção dos enfermos. O Vaticano lembra o valor que os ciganos dão ao batismo e aos funerais, fatos marcantes para a comunidade.
"São normas gerais, que servem para os ciganos do mundo todo, com enfoque bastante europeu", observa padre Rocha, um dos quatro brasileiros que contribuíram para a redação do texto, quando ele foi discutido em Budapeste, em 2003, no 5º Congresso Mundial da Pastoral dos Ciganos.
Na prática, os padres que dão assistência espiritual aos ciganos deparam com situações inesperadas. Por exemplo, na administração do batismo. "Alguns grupos costumam batizar as crianças mais de uma vez, uma maneira de conseguir ter compadres e comadres em cada lugar em que acampam", informa padre Rocha. O compadre assume o papel de protetor, para não deixar que os afilhados sejam hostilizados pelos moradores das vizinhanças.
O que fazer para respeitar a cultura cigana sem ferir as normas da Igreja? "Explico que o batismo é um sacramento que só se recebe uma vez na vida, mas não me recuso a abençoar a criança, mesmo que tenha de jogar um balde de água em sua cabeça", disse o padre cigano. Mas isso só no acampamento ou num grupo fechado, porque na paróquia ele faz questão de observar o rito oficial, para não escandalizar os não ciganos.
Segundo frei Tadeu, os ciganos são mais de 800 mil no Brasil e estão divididos em várias tribos: khalom, kalderashah, maktchuaayah, khoragrhaneh, gurbhetah, sinti, gadhuliyah e lovarah. O Vaticano calcula que, no mundo todo, eles cheguem a 18 milhões. Durante a guerra, mais de 600 mil ciganos foram mortos nos campos de concentração nazistas da Alemanha e da Polônia.
"Sofremos perseguição no passado e ainda enfrentamos muito preconceito", disse Jorge Nicoli. "Quando era menino, apanhei muito na escola porque, se sumia alguma coisa, diziam que era eu que roubava." Ciganos de vida sedentária e ricos preferem pagar professor particular para os filhos.
Autor: José Maria Mayrink
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/03/2006, Vida&, p. A22