INFÂNCIA INDÍGENA Lições do assassinato da criança Kaingang |
É tempo de ver o invisível de nossa cegueira para com as crianças indígenas
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por Assis Oliveira |
Foto: Pedro Krum/cc . Pés de criança kaingang
Quando comecei a estudar e pesquisar sobre as crianças indígenas, seus direitos e realidades, me assustei, de imediato, com o fato delas estarem no topo dos índices sociais em relação às condições de vulnerabilidade e de violação de direitos. Do (não) acesso à escola ao (não) registro de nascimento, dos índices de desnutrição aos números de mortalidade infantil, enfim, estão no topo da marginalização e da exclusão social.
Mas estes índices sociais não falam por si as causas de sua conformação. Para olhar para as crianças indígenas é necessário ampliar a vista para entender as condições de vida de seus povos, e de como as marginalizações e discriminações sociais que os afetam acabam aumentando de intensidade quando chegam até suas crianças.
Por isso ouvi repetidamente de várias lideranças indígenas, quando em pesquisas, que o primeiro direito das crianças é o direito a terra, um direito inexistente no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei nº. 8.069/90) e na Convenção dos Direitos da Criança (CDC), mas que é fundamental para garantia dos demais direitos que pertencem ao universo das crianças indígenas. Como me dizia uma liderança indígena certa vez: “o direito a terra abre as portas para os outros direitos das crianças”.
O direito a terra, nessa perspectiva indígena, é o direito as condições necessárias para a existência coletiva, para o usufruto étnico do bem viver com base numa noção de territorialidade que repercute diretamente nos aspectos físicos, sociais, culturais, econômicos e ambientais com os quais os povos e suas crianças vão estruturar suas vidas, sempre pensada desde uma perspectiva coletiva ou grupal, mas atenta as situações e especificidades de cada um, sobretudo das crianças.
Ao olhar para as condições de vida das terras Kaingang no Sul do Brasil não é difícil entender como o preceito acima não é garantido. Confinados em poucos hectares de terra, o aumento populacional e a pressão dos agentes externos foram, paulatinamente, minando as condições de sobrevivência apenas com o que a terra lhes pudesse oferecer, com o cada vez menos que a sagrada terra pode lhes oferecer.
Assim, o artesanato Kaingang, antes um aspecto da cultura material utilizado para suprir as necessidades socioculturais internas, depois do contato com o não-indígena – e das consequências negativas aos indígenas devido tal contato – “passou a [ser] produzido quase que exclusivamente para a comercialização e adaptados às necessidades da venda”, como informam Talita Savoro, Ninarosa Silva e Ana Lúcia Nötzord, em um artigo sobre o tema, e complementam “os indígenas saem de suas casas para venderem seus objetos ou trocá-los por alimentos e roupas.”
A ideia do sair de suas casas, de suas terras, significa realizarem um deslocamento – temporário ou permanente – para outro espaço e terra, a do meio urbano, na maior parte das vezes, colocando-se sob o olhar de sujeitos que não compreendem (e nem querem compreender) os motivos de suas migrações e venda de artesanato.
É aqui que encontro Vitor Pinto, a criança Kaingang que foi brutalmente assassinada por um homem enquanto era amamentado pela mãe, no dia 30 de dezembro de 2015, em Imbituba, litoral do estado de Santa Catarina. Como ressalta a Nota de Repúdio do CIMI, publicada um dia depois: “Vítor faleceu em um local que a família Kaingang imaginava ser seguro. As rodoviárias são espaços frequentemente escolhidos pelos Kaingang para descansar, quando estes se deslocam das aldeias para buscar locais de comercialização de seus produtos.”
Numa outra matéria jornalística, publicada pelo Portal G1, Azelene Kaingang complementa a informação, indicando que: “[a] família tinha como destino a cidade de Garopaba, onde ficaria com um grupo de 15 pessoas na Praça da Capivara. Lá dormiriam embaixo das árvores e pela manhã trabalhariam nas praias. Na Aldeia de Condá, à qual pertencem, cerca de 30 pessoas migram para o litoral na temporada.”
Aos não-indígenas, e, no caso, aos não-kaingang, a ideia de vê-los transitando ou morando em “suas” cidades, rodoviárias e praças faz aflorar (ainda mais) a discriminação e o sentimento de ódio (ou desprezo) para com tais sujeitos, acarretando vários cenários de violência física, moral ou psicológica que os cega (ou os blinda) de perceber a violência estrutural que fez com que os Kaingang tivessem que vir para o espaço urbano para buscar sobreviver e dar condições de vida às suas crianças.
Vitor Pinto foi assassinado por um homem, mas são muitas mãos e rostos os responsáveis pelo fatídico destino da família de Vitor Pinto de estar numa rodoviária e de não ter o direito a terra e a preservação de suas condições diferenciadas de vida. Não que não o pudesse estar ali, a questão não é esta. O ponto central não é a liberdade de locomoção, mas a desigualdade social e as barreiras culturais que impedem a afirmação do direito à diferença, num país, num Estado, numa sociedade que ainda acaricia os povos indígenas, como fez o algoz de Vitor, antes de desferi-lhe o golpe covarde – ainda assim um golpe que acredita ser melhor um indígena morto, do que ocupando suas terras, suas cidades e seus modos de vida.
No exato momento em que li a Nota de Repúdio do CIMI, quando tomei conhecimento do assassinato de Vitor Pinto, lembrei-me de minha ida até a cidade de Maringá, no Paraná, em junho do ano passado, convidado pela Associação indigenista de Maringá (ASSINDI) para ajudar a “apagar o fogo” da celeuma gerada junto ao aparato estatal municipal ante a constante presença de crianças Kaingang e suas famílias nas ruas, ora vendendo artesanato com seus pais, ora pedindo o que os não-indígenas chamam de “esmola” ou dinheiro nos semáforos da cidade.
Numa roda de conversa em que estavam reunidos agentes públicos municipais, eu, membros da ASSINDI e, sobretudo, lideranças e crianças kaingang – estas últimas entretidas com suas brincadeiras – houve o “vaticínio não-indígena governamental” da situação: trabalho infantil de caráter exploratório! “Vender artesanato na rua é colocar a criança em risco”, diziam alguns, “pedir esmola é colocar a criança em risco”, endossavam outros. E os caciques ouviam.
Num dado momento, um deles pediu a palavra, e replicou: “nossas crianças não pedem esmola, só cobram de vocês um pouco da riqueza que tanto exploraram de nossas terras”. “Nossas terras”, indicava o cacique, eram as terras daquela cidade, daquela Maringá que se achava um território não-indígena. E, se agora o é (na mente dos seus moradores), foi porque, muito tempo atrás, outros não-indígenas exterminaram e expulsaram o povo Kaingang que ali residia para explorarem seus recursos naturais.
Outro cacique logo depois pediu a palavra e complementou: “nossas crianças vendem artesanato para aprenderem na prática e para conhecerem mais da língua de vocês e de suas espertezas”. Aprender na prática é uma forma de educação travestida no trabalho que é próprio das culturas indígenas, de seus modos de fazerem suas crianças compreenderem a importância e a função do conhecimento, e terem o domínio prático das questões que se quer ensinar. A “liberdade de praticar” da criança Kaingang a venda do artesanato nas ruas de Maringá, vista como uma negligência familiar pelos não-indígenas, era, aos olhos dos Kaingang, uma forma de zelar pelos seus futuros, atentos à necessidade de aprender no presente os conhecimentos e as habilidades da fabricação e da venda do artesanato. E mais, apontavam todos os Kaingang ali presentes que o verdadeiro risco não era a venda do artesanato pelas crianças, mas o fato de muitas delas terem que passar a noite dormindo debaixo de pontes ou em casas abandonadas, pois o município não tinha uma política de acolhimento temporário das famílias Kaingang e de suas crianças.
É aqui que reencontro pela segunda vez Vitor Pinto. Reencontro-o numa imaginação nostálgica dos momentos finais de sua vida, numa rodoviária em que sua família descansava. E por que descansava ali? Teria outro lugar para ir para poder realizar esse descanso? Para poder colocar Vitor para dormir e dar-lhe condições mínimas de estadia com segurança naquela cidade? E, logo em seguida, o vejo chegando até a cidade de destino, Geropaba, e lá indo dormir embaixo de árvores, num local ermo e que os transeuntes certamente os confundiriam com mendigos no passar apressado da noite, enquanto as crianças Kaingang, dentre elas Vitor Pinto, estariam brincando ou dormindo, tentando esquecer a fome, o frio ou as condições precárias. Não haveria outro local para dormirem? A Prefeitura ou a FUNAI, em nada poderia mudar tal situação eminentemente de risco coletivo? Quais políticas, efetivamente, precisam ser discutidas para os povos indígenas na cidade? Para com suas crianças ante as formas de deslocamento territorial?
Ao olhar para a rodoviária, para as árvores ou para as casas abandonadas, não é no imediato que devemos refletir. Mais do que lugares, estão aí os limites da efetivação da cidadania diferenciada das crianças indígenas, da criança Vitor Pinto em particular. Há, certamente, uma dívida histórica para com os povos indígenas que o Brasil começou a (tentar) pagar com a promulgação da Constituição Federal de 1988, e dos artigos 231 e 232, mas suas crianças continuam a ser excluídas dos direitos que lhes cabem em termos geracionais, dos direitos das crianças e dos adolescentes que carecem de fundamentos normativos e de preparação dos profissionais da rede de proteção para saber lidar com estes outros, com estas crianças, não somente às indígenas, mas também as ribeirinhas, as ciganas, as quilombolas, as de fundo de pasto, as caiçaras, enfim, as crianças da diversidade cultural.
E é como diversidade cultural que gostaria de acabar este artigo. Para além das mazelas sociais que afetam aos povos e às crianças indígenas, é na riqueza de suas diversidades culturais, da pluralidade de forma com que concebem suas crianças e do valor supremo que as mesmas adquirem no cuidado e no zelo para com suas vidas, que reside o verdadeiro legado desses povos e comunidades, especialmente do povo Kaingang.
Essa diversidade é o que falta aos não-indígenas perceber, pois aqui é preciso escutar e sair da posição de quem tudo sabe, para a de quem se predispõe a aprender com o outro o que é o outro. Ou, como coloca Deborah Duprat, trata-se de buscar a compreensão do outro, ao invés da interpretação sobre o outro, na medida em que “[c]ompreender, ao invés de interpretar, é sair do cogito em direção à prática que se
apresenta, e fazê-la falar”. É de encontros e diálogos seriamente interculturais que carecem o Estado e a sociedade brasileira para com as crianças indígenas e seus povos, assim como outras crianças de povos e comunidades tradicionais. Encontros e diálogos que resultem em políticas públicas, direitos e profissionais mais adequados para promoverem suas diversidades e os protegerem das discriminações e marginalizações culturais.
Paradoxalmente, Vitor Pinto foi assassinado numa rodoviária, num lugar de encontros, de reencontros e de partidas. Numa mensagem final, a sua partida nos coloca o dever de encontrar caminhos para que “outros Vitor” não se repitam. Aqui, muito mais do que o assassinato em si, está o descaso, a invisibilidade e a intolerância com que a sociedade e o Estado vêm tratando as crianças indígenas e seus povos, muitas vezes não os matando, mas deixando morrer. Contra isso, não nos resta muitos ônibus a tomar: está no levar a sério os direitos indígenas – e os direitos de povos e comunidades tradicionais – e na participação de crianças, jovens, mulheres, adultos e idosos desses grupos étnicos na construção dos direitos e das políticas para as crianças indígenas! O que virá será algo novo, sejamos corajosos o suficiente de pegar este ônibus.
Assis Oliveira
Assis Oliveira é autor do livro “Indígenas Crianças, Crianças Indígenas: perspectivas para a construção da Doutrina da Proteção Plural” (Juruá, 2014) e de artigos sobre o tema dos direitos das crianças indígenas, os últimos publicados sendo: “O lúdico em questão: brinquedos e brincadeiras indígenas”, escrito em parceria com William Domingues e Jane Beltrão, e publicado na Revista Desidades, em 2015
[1 ]Assis Oliveira é Professor de Direitos Humanos da Faculdade de Etnodiversidade da Universidade Federal do Pará |