Mulheres ciganas: medo,
relações
intergrupais e
confrontos identitários
Gypsy Women: Fear,
intergroup relations and identity conflicts
Recibido: junio 6 de
2009 Revisado: noviembre 24 de 2009 Aceptado: junio 15 de 2010
Mariana
Bonomo *
Lídio
de Souza
Z eidi
Araujo Trindade
Fabiana
Davel Canal
J ulia
Alves Brasil
A ndré
Mota do Livramento
A na
Paula da Silva
Milani Patrocínio
Centro
de Ciências Humanas e Naturais,
Universidade
Federal do Espírito Santo, Brasil
Abstract
Through the Theory of Social Identity our objective
was to know the stereotypes present in the rural imaginary related to the gypsy
group, and the feelings associated with this ethnic group. Ten women,
non-gypsies, residents of a rural Brazilian community, participated in this
study. We analyzed the data through the Alceste software. The analysis of the
information obtained has allowed us to identify the feeling of fear as the main
mediator of practices related to the gypsies, confirming characteristics widely
present in the social imaginary about this ethnic group. There are present the
classic stereotypes of thieves, criminals and the cursed. It discusses the
dynamics of identity provoked by the conflict between the rural community and
the gypsies, emphasizing the processes that guide the field of identification
and differentiation in/out-group.
Key words authors
Exclusion, social identity, fear, gypsy woman, rural woman.
Key words plus
Culture, cultural studies, social movements, social psychology.
R e s u m o
Através da
Teoria da Identidade Social procurou-se conhecer os estereótipos presentes no
imaginário rural associados ao grupo cigano, bem como os sentimentos associados
a esta etnia. Foram entrevistadas 10 mulheres não-ciganas, moradoras de uma
comunidade rural brasileira. Realizou-se a organização dos dados através do software
Alceste. A análise das informações nos permitiu identificar o sentimento de
medo como importante orientador das práticas relacionadas aos ciganos,
confirmando características presentes no imaginário social amplamente difundido
acerca desta etnia.
Estão presentes
os clássicos estereótipos de ladrões, malfeitores e amaldiçoados. Discute-se a
dinâmica identitária provocada pelo conflito entre a comunidade rural e os
ciganos, enfatizando os processos que orientam o campo de identificação e
diferenciação endo/exogrupal.
Palavras-chave
autores
Exclusão, identidade social,
medo, mulher cigana, mulher rural.
Palavras-chave
plus
Cultura, estudios culturales, movimientos sociales,
psicología social.
* Rede de Estudos e Pesquisas em
Psicologia Social
(RedePso), Centro de Ciências
Humanas e Naturais,
Universidade Federal do Espírito
Santo. Av.
Fernando Ferrari, nº 514, Campus
Universitário
Goiabeiras, Vitória, Espírito
Santo, Brasil. Cep:
29075-910.
Introdução:
Desde o
nascimento os indivíduos se relacionam com o mundo a partir de um conjunto organizado
de conhecimentos e sentimentos que lhes permitem o desenvolvimento do sentido
de pertencimento e, consequentemente, de categorização do outro. À medida que o
desenvolvimento se processa, os nossos sentimentos vão sendo fortemente marcados
por regras e normas sociais, definidas pelos grupos sociais aos quais
reconhecemos pertencer. A dimensão afetiva assume, então, funções comunicativas
e de sociabilidade, podendo favorecer o afastamento ou a aproximação entre os
grupos e as pessoas (Leite, 1999).
Carvalho,
Machado e Suyama (2002) argumentam que o desenvolvimento do ser humano ocorre “através
do confronto de ações, emoções, motivações e significados” (p. 47), sendo este
um importante processo de construção do indivíduo, bem como das práticas
sociais por ele vivenciadas, posto que a própria rede de interações é parte da rede
social simbólica, constituída em um contexto histórico determinado,
caracterizado por elementos culturais, econômicos, políticos e ideológicos. Neste
contexto se organizam os valores atribuídos aos diferentes grupos sociais, bem
como o medo de determinados grupos humanos. Glassner (2003) informa que o medo
na atualidade envolve um processo de manipulação cuja trama esconde o interesse
econômico na obtenção de lucro com determinadas formas de medos e insegurança, que
são alimentadas nos mais diversos veículos de comunicação de massa. Vivemos,
assim, entre a difusão de uma cultura do medo, um sentimento individual e
socialmente partilhado, referenciado por objetos sociais que são oferecidos às
nossas relações cotidianas já interpretados e revestidos de uma ideologia que
contribui para a discriminação (Fiorin, 2004).
Martins (2004)
fornece elementos importantes para a compreensão de como esse processo se
organiza na vida cotidiana dos indivíduos. O autor explica que o sentimento de
medo está ligado à nossa relação com eventos futuros, preparando-nos para fugir
de um perigo que pode ser real ou imaginário:
“uma espécie de
aviso da possibilidade de alguma ameaça ao organismo” (p. 55). À medida que nos
desenvolvemos vamos aprendendo a identificar e fugir dessas situações potencialmente
perigosas, sendo esse aprendizado diferente de sociedade para sociedade, cultura
para cultura e, até mesmo, de indivíduo para indivíduo. Como destaca Leite (1999),
os sentimentos atendem a uma necessidade do organismo, refletindo “as
exigências, as normas e valores historicamente acumulados e assimilados pelo
homem individualmente” (p. 96). Há, portanto, um compartilhamento individual
dessa estrutura simbólica com a qual dialogamos cotidianamente,
em um processo
de assimilação ativa, rejeitando e incorporando os conteúdos imagéticos que nos
permitirão nos reconhecer como indivíduos – frutos de um conjunto de relações
sociais, orientadas pelos diferentes grupos de que fazemos parte, nos quais tecemos,
incessantemente, a nossa identidade social.
É neste sentido
que Walton (2007) destaca que até mesmo um simples desconforto em relação aos hábitos
do vizinho do lado pode passar de um ato inocente para uma ideologia de
amargura e conflito. Não podemos nos esquecer, contudo, que a própria história da
humanidade é uma história de conflitos, contada pelos rastros do confronto
entre grupos diversos em diferentes épocas, confronto que visa criar e manter
espaços in-group (Funari, 2006). Embora tais conflitos possam ter
motivações político-econômicas, são, sobretudo, processos simbólicos que
ocorrem no contexto políticoideológico. Em síntese, nos constituímos em um processo
no qual o medo, ao estabelecer fronteiras entre os grupos sociais, alimenta
determinados estereótipos e orienta práticas intergrupais. Delumeau (2007)
esclarece:
A raiz disso se
encontra na apreensão provocada entre pessoas que não se conhecem, ou que se
conhecem mal, que vêm de fora, que não se parecem conosco e que, sobretudo, não
vivem da mesma maneira que vivemos. Falam uma outra língua e têm códigos que
não compreendemos. Têm costumes, comportamentos, práticas culturais que diferem
das nossas, não se vestem como nós, não comem como nós, têm religião,
cerimônias e ritos cujo significado nos escapa. Por todas essas razões, eles
nos assustam e somos tentados a tomá-los como bodes expiatórios em caso de
perigo. Se uma desgraça acontece a uma coletividade, é por causa do
estrangeiro. (p. 46)
A importante
questão que decorre deste processo é o uso ideológico que dele se faz, uma vez que
a profusão de estereótipos e práticas associadas a determinados grupos sociais
concorrem para a construção de grupos depositários reforçando a manutenção de
representações marginais e concretizando a identidade como ideologia
separatista (Sawaia, 2001). É a partir desta lógica que aprendemos a sentir
medo de determinados grupos de pessoas, lugares, ideologias e, por conseguinte,
a agir e a avaliar negativamente esse “outro”, marcando nosso próprio espaço
identitário. Esta parece ser a condição de um grupo milenar, que fez da
exclusão itinerante uma cultura de liberdade: os ciganos.