Cem
Maneiras de Dizer Adeus: Os Ciganos e a Morte
LUCAS
MEDEIROS DE ARAÚJO VALE*
LOURIVAL
ANDRADE JÚNIOR**
O extremo respeito aos mortos produziu várias
“regras” específicas de moral e conduta diante da morte e do morto. “O luto
pode ser guardado de uma maneira muito rígida durante três, oito, nove dias, ou
então durante 12 ou 15 anos...” (MARTINEZ, 1989: 94-95). Pereira (2009)
conta-nos que em alguns grupos ciganos o nome do falecido jamais deverá ser pronunciado
novamente após o seu falecimento, sendo feita raríssimas exceções, usando-se, para
se referir a ele circunlóquios e termos de parentesco. Ferrari (2010), ao
relatar sua vivência com os Calons do estado de São Paulo, mostra que quando
ocorre a visita de um outro Calon enlutado ao acampamento destes grupos, o
respeito ao luto alheio obriga que se desliguem todos os aparelhos de som do
ambiente.
Segundo Martinez (1989), em alguns casos, as
roupas do defunto podem ser doadas ou então queimadas com todos os bens do
morto, como ocorre em algumas famílias Manouches,
já Ferrari (2010) lança seu olhar para uma prática bastante específica, que
parece está associada a grupos nômades e seminômades Calons, de acordo com a
autora, nas famílias estudadas, é necessário abandonar o local da morte,
seguindo após o funeral para outra cidade ou para outro estado. Nos casos
observados, a caminhada estava intimamente relacionada com o desejo de
afastar-se das lembranças tristes que o ambiente poderia trazer:
O limite de
uma vida impõe o limite de um espaço vivido. A morte de uma pessoa
instaura um
corte espaço-temporal. É preciso criar um vazio, apagando todos os
sinais que
lembram o morto. E, todavia o morto permanece na ausência. A memória
constante
daqueles que se foram expressa na recusa mesma dessa rememoração, ao
evitar
guardar objetos, fotos, ou passar por lugares em que viveram com eles.
(FERRARI, 2010:
257).
No interior do Rio Grande do Norte, através
do projeto/plano de trabalho “Comunidades ciganas: O Seridó como território em
movimento” podemos observar casos semelhantes, mas aparentemente sendo o temor
aos espíritos o grande causador da movimentação de ciganos pela região do
Seridó. Em entrevista com Francisco, cigano calon que vive no estado do Rio
Grande do Norte, quando questionado sobre o porquê da saída de sua família do
município de Caicó há vinte anos, este revelou que ele e sua família tiveram que
partir após a morte do seu pai, pois “casa que morre
gente cigano não fica” ¹. (¹FRANCISCO. Cigano Francisco e sua família. Caicó, 20 de Dezembro de 2012.
Conversa informal com um
cigano que
estava de passagem com a sua família pelo município de Caicó/RN.)
No decorrer
do diálogo, os outros membros da família confirmaram que após a morte de
qualquer individuo, cigano ou
não, que more na mesma residência, ou até na mesma rua, era seguida pelo
abandono do recinto.
***
De forma geral, ainda muito pouco se conhece
sobre a relação dos, assim chamados, ciganos com a morte, com o morrer, ou com
os mortos. As infinitas variáveis da ciganidade e das práticas exercidas pelos
ciganos, sejam eles roms, sintis, ou calons, é
o que instiga e o que deve fundamentar todos os trabalhos referentes aos
mesmos. “Estar diante do
cigano era estar diante da diferença extrema, fragmentadora” (TEIXEIRA, 2007:
137). Sobre a morte: são inúmeras as práticas e centenas as sensibilidades. Um
único cigano pode até desconhecer e negar tudo aqui exposto, e apresentar em
seguida cem outras formas de dizer adeus. Esta é simplesmente a maravilha de se
trabalhar com estes povos em eterno “movimento”.
O nômade, o
tsigano, resume, por onde ele passa, a totalidade da aventura invisível,
acessível
somente através das estradas do imaginário, dos símbolos; além das
portas do
nascimento e da morte, dos infernos e do céu, da noite e da luz das
sociedades
nas quais eles vivem – além (MARTINEZ, 1989: 119).
Pags
5 à 7.
***
Referência
Bibliográfica
ANDRADE
JÚNIOR, Lourival. Da barraca ao túmulo: Cigana Sebinca Christo e
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e sua Família. Caicó, 20 de Dezembro de 2012. Conversa informal com um cigano
que estava de passagem com a sua família pelo município de Caicó/RN.
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