Cem
Maneiras de Dizer Adeus: Os Ciganos e a Morte
LUCAS
MEDEIROS DE ARAÚJO VALE*
LOURIVAL
ANDRADE JÚNIOR**
Como o galé
deixa os ferros/ Quando vai livre viver, /
Assim
deixarei meus dias/ Quando tiver de morrer./
A morte, por
ser desgraça/ Não deixa de ser ventura, /
Pois corta
pelas raízes/ Males que a vida não cura.
(MORAES FILHO,
1981)
Andrade Júnior (2008) define como sendo “cigano”
todos os grupos romani, que, em linhas
gerais, dividem-se em três grandes grupos - Rom,
Sinti (também chamados de Manouch)
e Calon, ou Kalon –
e em outros vários subgrupos. Teixeira aponta estes grupos e descreve-os,
mostrando seus dialetos próprios e algumas características específicas:
O grupo Rom, demograficamente majoritário, é o que está
distribuído por um número maior de países. É dividido em vários subgrupos [...]
Os Sinti, também chamados Manouch, falam a língua sintó e são numericamente
expressivos na Alemanha, Itália e França. [...] Os Calon, cuja língua é o caló,
são ciganos que se diferenciaram culturalmente após um prolongado contato com
os povos ibéricos [...] onde ainda são numerosos, migraram para outros países
europeus e da América. Foi de Portugal que vieram para o Brasil, onde são o
grupo mais numeroso. (TEXEIRA, 2007: 19-20)
A grande dispersão dos ciganos pelo mundo,
assim como as relações interpessoais estabelecidas pelos mesmos,
indubitavelmente colaboraram no estabelecimento de diversas práticas fúnebres,
diferenciando-se entre os grupos e até mesmo dentro de um mesmo grupo. É
possível, por exemplo, encontrar um cigano pertencente ao grande grupo Calon
que vive no Seridó potiguar brasileiro com algumas práticas bem distintas, ou
com conotações diferentes, das do que vivem no estado de São Paulo, ou em
países como Portugal e Espanha. Esta grande diversidade acaba, então,
constituindo um enorme emaranhado cultural, projetando uma história marcada por
exceções e contradições; “São diversos grupos cada qual com suas
características
próprias e com suas táticas de sobrevivência.” (ANDRADE JR,
2008: 18)...
***
No clássico “Os Ciganos no Brazil”, publicado
primeiramente em 1886, reúnem-se algumas das trovas e quadrinhas fúnebres de
autoria calon relatadas por
intermédio de Moraes Filho, que pôde registrá-las, principalmente, graças a sua
atuação médica que lhe permitia “invadir” as casas ciganas para acompanhar os
últimos momentos de alguns desafortunados. Através desse cancioneiro podem-se
ter, minimamente, algumas informações correspondentes ao quadro sociocultural e
econômico de alguns destes calons,
além de perceber a forma que a morte aparecia nestas casas em meados do século
XIX. Elucidamos aqui uma destas trovas:
CONSOLAÇÕES
DA MORTE
Os
dias dos infelizes
Seriam
mais lutuosos,
Se
a Morte só alcançasse
Os
viventes venturosos!
Mas
não; os céus complacentes,
Vendo
injustiça nos fados,
Consentiram
que extensiva
Fosse
ela aos desgraçados.
Assim,
eu bendigo a Morte,
Que
me faz inda sorrir;
Porque
sei que, só com ela,
Minhas
pernas se hão de ir!
Bendigo,
porque dos tristes
Não
eterniza a provança;
E
surge sempre em minh’alma
Como
um fanal d’esperança!
Como
a crença que me diz
Que
com ela tudo finda,
Como
o meu maior conforto
Que
me faz sorrir ainda! (MORAIS FILHO, 1981: 76)
As trovas fúnebres geralmente eram
proclamadas durante os velórios, onde a viúva mergulhava-se em lágrimas e era
confortada pelos mais próximos. Essa trova, em especial, mostra a grande falta
de esperança para com a vida, o que certamente é fruto de um longo período histórico
marcado pelas perseguições, marginalizações e preconceito, além das condições
subumanas, de extrema pobreza e abandono, em que muitos ciganos viviam no
Brasil. Andrade Jr, também versa sobre a morte e discute as várias conotações
atribuídas pelas famílias ciganas “tradicionais” do Brasil:
É fato que a morte para os ciganos tinha muitas conotações.
A morte de um cigano com idade avançada era encarada como uma vitória, e a vida
após a morte deste cigano seria coroada de muita alegria. Já a morte de uma criança
ou de um adulto por qualquer acidente era vivenciado como algo terrível e o
sofrimento era visível. (ANDRADE JR, 2008: 41)
Observando ambos escritos, é possível
perceber a dualidade e os significados que a morte pode conotar. Na trova
ilustrada por Moraes Filho, os ciganos mal-afortunados dão um sentido poético à
morte, que “com ela tudo finda”,
aliviando as dores e prometendo dias melhores no além-vida. Andrade Jr, por
outro lado, mostra que já em outros casos ela pode causar um imenso infortúnio
e pode estar acompanhada de grandes angústias...
Segundo a brasileira Cristina da Costa
Pereira (2009), a reverência e os cultos aos mortos, prestados pelos ciganos,
demonstram o forte sentimento de religiosidade e sensibilidade existente nesses
grupos. “De uma maneira geral, os ritos que seguem à morte, nas sociedades
tradicionais, são estreitamente ligados à ideia da vida além da morte,
conseqüentemente à idéia da alma” (MARTINEZ, 1989, p.94). Para Pereira (2009),
o carinho dos ciganos pelos seus entes queridos que já se foram são a garantia de
que o duho, a alma, não
ficará mais vagando pelos lugares da Terra e seguirá em paz para outro local,
ao som das palavras t’avel erto (descanse
em paz) ...
A pomana é
um dos ritos fúnebres realizados por alguns ciganos para homenagear o ente
querido. Segundo Moonen (2012), trata-se de uma tradição de origem balcânica
que foi assimilada e é exercida pelos ciganos pertencentes ao subgrupo Kalderash,
do grande grupo Rom. Nesta festa
fúnebre, geralmente reúnem-se amigos e familiares a fim de se despedir daquele
que teve a sua vida interrompida. “Dá-se, então, um banquete com as comidas e bebidas
preferidas do antepassado.” (PERERIRA, 2009: 76). É proibido, durante a
cerimônia, tudo que o mesmo repudiava, por exemplo, se o cigano morto não
fumasse, em respeito à esse, os demais não deveriam fumar. Pereira descreve
detalhadamente o ritual:
No centro da
mesa do banquete, ficam a pogatsha com uma vela acesa em memória
do
antepassado e uma garrafa de vinho fechada.
Depois de
tudo terminado, com a
partida dos
convidados, o que estava sobre a mesa,
oferecido ao
morto, será jogado
num riacho,
numa cachoeira ou mar (PERERIRA, 2009: 77).
Páginas 2 á 6.
2013
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AMSK/Brasil