LADRÕES DE CRIANÇAS
Por Cristina Betioli Ribeiro
Muito antes do médico baiano Alexandre José de
Mello Moraes Filho (1843-1919) publicar o Cancioneiro dos Ciganos
(1885) e Os Ciganos no Brasil (1886), outras obras de gênero diverso,
que figuraram entre os primeiros romances modernos produzidos no Brasil, já
cediam espaço às controversas descrições dos assim conhecidos calons.
Em As tardes de um pintor (1847),
narrativa ficcional do romancista carioca Teixeira e Souza (1812-1861), no
capítulo sobre “O campo dos ciganos”, os preâmbulos para a apresentação do
personagem Justo - à parte um cigano de fato justiceiro - fazem alusão
a uma raça de “antípodas da civilidade e bons costumes”. Nas páginas
folhetinescas de Memórias de um sargento de milícias (1852), Manuel
Antônio de Almeida (1831-1861) submete seus dois protagonistas, Leonardo Pataca
e o filho homônimo, a paixões e aventuras adversas com ciganos, pintados como
lascivos, velhacos e “acostumados à vida vagabunda”.
Era de se esperar que em obras de outra natureza,
voltadas para as preocupações com as origens de nossas manifestações
folclóricas, o tom fosse diferente. No entanto, resistem sensíveis semelhanças.
Numa época em que médicos e juristas também se ocupavam de literatura e estudos
culturais, Mello Moraes Filho integra um significativo movimento ideológico que
propõe investigações expressamente científicas sobre a cultura popular
brasileira, em oposição à estética romântica. Esse movimento ganha corpo
especialmente a partir dos anos 70 do século XIX, sob influência do
positivismo. Naquele momento, o folclore é substancialmente tomado como novo
mote nacionalista. A maioria dos intelectuais envolvidos nesta corrente
reformadora provém ou é simpatizante da Escola de Recife, definição
para o grupo de ideólogos formado na antiga Faculdade de Direito pernambucana.
O mestiço, celebrado por Sílvio Romero
(1851-1914) como o máximo representante da brasilidade desde “A Poesia Popular
do Brasil” (Revista Brasileira, 1879), torna-se alvo dos estudos
etnográficos, orientados por pesquisas que buscam nas contribuições portuguesa,
indígena e africana, os componentes dos costumes, usos, superstições e
cancioneiros populares.
Dos ciganos, permaneceu mais a idéia de
imisturáveis, “supersticiosos, desclassificados e desconfiados”, que de
participantes na formação do brasileiro.
É com esse espírito que Mello Moraes Filho
escreve sobre os ciganos, mas sem desvencilhar-se completamente dos juízos de
valor sinalizados naquela prosa de ficção de meados do século XIX. No Cancioneiro
dos Ciganos, fruto do trabalho direto de coleta de canções nas regiões
cariocas habitadas por calons à época (Cidade Nova e Valongo), o
discurso é o de resgate de uma poesia que poderia ter origem em costumes da
Antigüidade. Para o folclorista, em consonância com seus pares Sílvio Romero,
Franklin Távora (1842-1888), João Barboza Rodrigues (1842-1909), Alfredo do
Vale Cabral (1851-1894) e muitos outros, o valor do cancioneiro, produzido por
“hordas sem culto, sem asilo e sem lar” seria, portanto, de valor mais
arqueológico do que literário. Cultura e arte ciganas são fossilizadas
neste movimento de apreensão e descrição etnográfica, única via pela qual Mello
Moraes consegue apreciá-las.
Embora reconheça um “misticismo admirável” nos
versos reunidos, sua essencial identidade popular e seu relevo para a
reconstituição do passado, o autor destaca neles um “canto de dor” dos banidos
ou subjugados, também caro aos negros e índios, igualmente tomados como
inferiores em relação à raça branca do português desbravador. Nas “Elegíacas”,
reunidas na segunda parte do Cancioneiro dos Ciganos, são reproduzidas
as agruras cantadas por um povo oprimido há séculos. Registrado em redondilhas
maiores, métrica típica da poesia oral, o poema expõe as lamentações de um
injustiçado: Para contar os meus males/ Meu natural me contém;/ As sepulturas
têm flores,/ A minha vida não tem./ (...) Quando o réu é infeliz/ Mesmo com
razão tem crime;/ Sua defesa não vale,/ Sua inocência o oprime./ Se houver um
ente que sofra/ Ainda mais do que eu,/ Digam ser meu mal mentira/ E zombem do
pranto meu./ Sofro às vezes tantas dores/ Que adormeço soluçando,/ A mim mesmo
sou contrário/ O meu pranto motivando.
A suposta capacidade de os ciganos manterem as
suas tradições invioladas no contato com outras culturas poderia ser
questionada simplesmente pelas características abrasileiradas desta poesia,
apesar da possibilidade de adulterações do registro escrito. Ainda assim, o
coletor sustenta a hipótese de uma imunidade cultural e a julga simultaneamente
positiva e negativa. Positiva por preservar usos preciosos para o conhecimento
arqueológico, mas negativa por levar os ciganos, por resignação, a recaírem nos
vícios e a se manterem “bárbaros” em relação aos povos “civilizados”.
Estas concepções desprestigiam organizações
sócio-culturais distintas dos valores e práticas dos centros urbanos e estão
ligadas às datadas idéias positivistas de progresso e evolução, além de também
servirem de base para os julgamentos presentes em Os Ciganos no Brasil.
Nesta segunda obra sobre a raça que teria migrado
da Índia para se estabelecer no Egito e sucessivamente em outras nações
européias, sobretudo Espanha, Mello Moraes oferece detalhadas descrições sobre
fisiologia, costumes, crenças e festas próprios dos ciganos. Examina a
propensão da raça à surdez; destaca a tendência à linguagem cifrada e às
alcunhas; comenta a beleza irresistível das calins, formosas, mas de
“mau exemplo no lar doméstico”; ressalta o apreço pelas celebrações de
casamento e morte; lista e transcreve as mais usuais superstições. Nos chamados
bródios, salienta o imprescindível toque da viola e as danças
sensuais. Tudo com a tonalidade pitoresca do binóculo de folclorista.
No tocante à religiosidade, o autor detecta
apenas os credos supersticiosos. Fator principal do hipotético atraso mental e
da “infância das sociedades”, o fetichismo é considerado, segundo as
prescrições da filosofia positiva, uma etapa retardatária do estado teológico
humano. Sob pontos de vista semelhantes, o médico maranhense Nina Rodrigues
(1862-1906) realiza exame cultural da mesma natureza sobre os africanos, em O
animismo fetichista dos negros baianos (1896). O interessante para a
discussão de Mello Moraes é exatamente o ponto em que ele flagra a contribuição
do “povo misterioso e errante” na “herança psíquica do brasileiro”. Mais do que
isso, é quando reconhece no cigano a fonte principal de crendices populares e
“a solda da mestiçagem” no Brasil.
Mello Moraes descreve costumes e crenças
próprios dos ciganos. Examina a tendência à linguagem cifrada e às alcunhas;
comenta a beleza das calins, formosas, mas de
“mau exemplo no lar doméstico”
A influência na cultura brasileira atribuída aos calons,
por Mello Moraes, é objetada por Sílvio Romero, que recusa a afirmação de que
os ciganos teriam participado como “solda” na composição do mestiço e questiona
o escorregadio propósito da investigação de fontes há muito permeadas por
outras culturas. Se os ciganos retratados por Mello Moraes eram os deportados
de Portugal para o Brasil, desde o início do século XVIII, como garantir que
seus costumes e cancioneiros fossem genuínos? Em que medida não se teriam
mesclado aos portugueses e brasileiros?
É certo, que no momento histórico de comemoração
da independência política do Brasil e de elaboração das primeiras definições
para o povo e o nacional, muitos preconceitos foram semeados. Dos
índios, por exemplo, o brasileiro herdou o adjetivo de “preguiçoso”, relido por
Mário de Andrade em Macunaíma (1928), reiterado nos caboclos caipiras
dos contos populares, como Jeca-Tatu e Pedro Malasartes, e estendido ao
conhecido atributo do jeitinho.
Dos ciganos, permaneceu mais a idéia de
imisturáveis, “supersticiosos, desclassificados e desconfiados”, que de
participantes na formação do brasileiro. Também vítimas do estigma de ladrões,
qualidade associável às antigas práticas asiáticas de “pilhagem”, os ciganos
foram foco de perseguições policiais e rejeitados pelo projeto civilizador do
Brasil oitocentista. O mito sobre os ciganos roubarem crianças, já inscrito nas
Novelas exemplares (1613) de Miguel de Cervantes (1547-1616) desde o
século XVII, foi reforçado, ao longo do tempo, pela ótica depreciativa sobre os
seus hábitos e modos de vida. Casos nunca comprovados de raptos de crianças por
ciganos, possivelmente ligados ao acolhimento voluntário de filhos ilegítimos
ou enjeitados atraídos pelo convívio mambembe, consolidaram a imagem de que os
ciganos eram perigosos (assassinos e canibais), exemplo de barbárie e,
portanto, uma casta a ser afastada da sociedade que se queria fundar
no Brasil. Contrários aos modelos de conduta cívica e virtuosa, estritamente
recomendados aos leitores de romances do século XIX, os ciganos eram maus-exemplos,
mas exóticos e fascinantes. Os “ladrões de crianças” eram personagens
interessantes para a literatura, porém, maus cidadãos. Na condição de
marginalizados, muitos ciganos de fato rendiam-se à exclusão e atendiam à
imagem pré-concebida de marginais, tornando-se alvo de ocorrências policiais e
notícias jornalísticas, que sedimentavam opiniões negativas e generalizadas
sobre o seu povo.
Neste contexto político e ideológico é que
começaram as pesquisas e registros sobre a cultura cigana no Brasil. As descrições
sobre seus costumes e manifestações artísticas, envoltas em preconceitos,
mistificações e banimento social, vinham impregnadas da expectativa pelo branqueamento
da população e da exaltação científica do progresso das civilizações.
Mesmo depois de muito tempo, as convicções
culturais plantadas no passado permaneceram influentes sobre os estudos de
folclore. As diversificadas formas de expressão popular, intrincadas,
ininterruptas e constantemente mutáveis, continuam sendo associadas à extinção
ou à corrida contra o tempo. Muito do que permanece das iniciativas válidas,
mas problemáticas de “salvação” do seu manancial, resulta, em parte, na
perpetuação de caricaturas sociais ou de falsos estereótipos.
Cristina Betioli
Ribeiro é doutoranda na Unicamp e autora da dissertação de mestradoO
Norte - um lugar para a nacionalidade. Campinas, IEL-Unicamp, 2003, sobre
os primeiros folcloristas brasileiros.
ABREU, Martha. Mello Morais Filho: festas, tradições populares e identidade nacional. In: A História contada: capítulos de história social da literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: EDUSP, 2006.
CERTEAU, Michel de. A Cultura no plural/ tradução de Enid Abreu Dobranszky.Campinas: Papirus, 1995.
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TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. História dos ciganos no Brasil. Núcleo de Estudos Ciganos, e-texto nº 2, Recife, 2000. Online: http://www.dhnet.org.br.