FOTO: Prof. Flávio José
A
mais selvagem e bárbara perseguição aos ciganos de que se tem notícia,
em toda a História da Humanidade, ocorreu não em séculos passados, entre
povos então ditos “primitivos” ou “selvagens”, ou no Brasil, mas em
pleno Século XX, na Alemanha, país (pelo menos até então) considerado
“civilizado”. As únicas vítimas do terror nazista que costumam ser
lembradas, no entanto, são apenas os judeus, e quase nunca os ciganos.
Enquanto hoje a bibliografia sobre o holocausto judeu é imensa, não
faltando inclusive museus e memoriais especialmente construídos para
lembrar este triste genocídio, o holocausto cigano sempre foi
considerado um fato de menor importância. Os documentos históricos
provam que não foi bem assim e que, lamentavelmente, ao lado de cerca de
seis milhões de judeus, nos mesmos campos de concentração, nas mesmas
câmaras de gás, nos mesmos crematórios, ou então fora deles num lugar
qualquer da Europa, foram massacrados também cerca de 250 a 500 mil
ciganos. Só recentemente começaram a ser publicados ensaios, inclusive
por autores alemães da geração pós-guerra, sobre este “holocausto
esquecido”, o holocausto cigano, que os intelectuais ciganos de hoje
preferem chamar de ‘poraimos’, para diferenciá-lo do holocausto judeu.
Gilsenbach
cita três fatores que facilitaram a perseguição aos ciganos na Alemanha
antes e durante a II Guerra Mundial: o já tradicional ódio dos alemães e
de outros europeus aos ciganos, existente já desde o Século XV; os
arquivos desde o final do Século XIX existentes sobre ciganos na polícia
criminal e as teorias de antropólogos, psiquiatras e médicos sobre
“higiene racial” e “biologia criminal”. O tradicional ódio aos ciganos
já foi visto anteriormente; os outros dois fatores, e principalmente o
último, precisam de alguns comentários.
No
início do Século XX, as políticas (anti)ciganas alemãs não foram
idênticas em todo o país, mas cada Estado ou Província [Land] inventava
as suas. Em Munique, na Bavária, já em 1899 criou-se um Serviço de
Informação Cigana que registrava todos os ciganos do Estado. Em 1905 o
seu diretor, Alfred Dillmann, publicou os primeiros resultados no
Zigeunerbuch [O Livro Cigano, também vendido nas livrarias] que continha
o registro, com uma dezena de dados pessoais, de 3.350 ciganos e que se
destinava a ajudar a polícia na ‘erradicação da praga cigana’.
Em
1925/26 a Bavária editou uma lei que tornou obrigatória a vida
sedentária e condenou a dois anos de trabalhos forçados ciganos não
regularmente empregados, lei que em 1929 passou a ser válida na Alemanha
toda. Mas já em 1927, todos os ciganos alemães foram obrigados a
andarem sempre com um documento de identidade, com retrato, impressões
digitais e outros dados pessoais. Alguns anos depois foi criado o
Serviço Central de Combate à Praga Cigana, órgão nacional que incorporou
o Serviço de Munique e outros semelhantes então existentes, e passou a
ser dirigido pelo mesmo Dillmann, que em pouco tempo reuniu informações
sobre mais de trinta mil ciganos alemães. Este Serviço anti-cigano foi
extinto em 1947, mas recriado em 1953, embora com outro nome;
definitivamente extinto foi somente em 1970, vinte e cinco anos após o
término da II Guerra Mundial!
O
Serviço alemão de Combate à Praga Cigana, sem dúvida alguma, foi o mais
eficiente do mundo e poucos ciganos devem ter escapado de seus
registros. No entanto, também em outros países foram realizados
recenseamentos ciganos, foram criados cadastros permanentes da população
cigana e criadas leis para evitar ou, pelo menos, controlar a sua
presença no país. Até a famosa Interpol (na época chamada Comissão
Internacional de Polícia Criminal) criou em 1936, em Viena, um Centro
Internacional para a Luta contra a Praga Cigana, cujos arquivos foram
destruídos em 1945. Ou seja, quando em 1933 os nazistas chegaram ao
poder, tanto na Alemanha quanto em vários países vizinhos (p.ex. França e
Holanda) que depois seriam ocupados, a maioria dos ciganos já estava
devidamente registrada e identificada, e já existiam políticas
anti-ciganas.
A
diferença era que agora os ciganos passaram a ser perseguidos - e
depois exterminados - também por motivos raciais, e não apenas por serem
considerados associais ou criminosos natos. Embora os alemães tenham
negado isto após a II Guerra Mundial, quando foram obrigados a pagar
indenizações às vítimas perseguidas por motivos raciais (admitindo-se
como caso único os judeus), e embora tenham sempre afirmado que os
ciganos foram perseguidos por serem “associais”, e não por serem de uma
raça diferente, não resta a menor dúvida que ambos os fatores pesaram na
perseguição. Muitos documentos e ensaios “científicos” da época
comprovam, sem sombra de dúvida, que não somente os judeus, mas também
os ciganos eram considerados membros de “raças” diferentes consideradas
perigosas, porque poderiam contaminar a pureza racial ‘ariana’. Para
esta justificativa “racial”, a Alemanha pôde contar com vários médicos,
biólogos e antropólogos.
Já
em 1904 o antropólogo Alfred Ploetz fundou um “Arquivo para Raciologia e
Biologia Social”, que no ano seguinte virou “Sociedade para Higiene
Racial”. Anos depois, os antropólogos Bauer, Fischer e Lenz publicaram
um manual sobre Genética Humana e Higiene Racial, que foi lido por
Hitler quando, prisioneiro em 1924, escreveu Mein Kampf, a futura biblia
nazista.Não pretendemos citar aqui todos os institutos alemães na época
considerados ‘científicos’, ou todos os biologos, antropólogos e outros
cientistas que na época se dedicaram a pesquisas raciais, eugenéticas e
ciganas, porque estes dados encheriam algumas dezenas de páginas. Dois
nomes, no entanto, merecem destaque, porque são citados por praticamente
todos os autores que tratam desta época: o médico psiquiatra Robert
Ritter e sua assistente, a enfermeira Eva Dustin, entre os ciganos Sinti
mais conhecida como Lolitschai, “a moça ruiva”.
Em
1937 Ritter se tornou diretor do Centro de Pesquisa para Higiene Racial
e Biologia Populacional, com sede em Berlim, onde se dedicou
intensivamente às pesquisas ciganas. Somente o nome deste Centro já é
suficiente para provar que os ciganos eram considerados uma “raça’
diferente. Neste Centro, entre outras coisas, Ritter investigava uma
suposta relação entre hereditariedade e criminalidade, elaborando
complicadas árvores genealógicas de ciganos para medir o grau de
‘mistura racial’, para o que utilizava inclusive os dados do já citado
Serviço de Informação Cigana de Munique, que foram transferidos para
Berlim.
Ritter
e os membros de sua equipe eram defensores da “eugenética”, ou “higiene
racial”, segundo a qual devia ser evitada a procriação de elementos
nocivos à sociedade. Entre as pessoas nocivas estavam não apenas os
deficientes físicos e mentais, mas também os “associais hereditários”
(mendigos, vagabundos, prostitutas, alcoólatras, homosexuais,
desempregados crônicos, e.o., como se estas características fossem
transmissíveis hereditariamente!), e as minorias raciais nocivas, como
os ciganos e os judeus. Para “limpar” a raça humana, Ritter e outros
tantos “eugenéticos” da época inicialmente propunham a esterilização
destas pessoas (a total eliminação física só seria proposta alguns anos
depois). Estima-se que na Alemanha nazista cerca de 400.000 pessoas
foram esterilizadas, entre as quais muitos ciganos.
O
mesmo aconteceu, por sinal, também em outros países, inclusive nos
Estados Unidos, onde até 1939 comprovadamente cerca de 30.000 pessoas
“indesejáveis” foram contra a sua vontade esterilizadas. Mas estes
tristes episódios, como também os vergonhosos campos de concentração
para japoneses e seus descendentes nos Estados Unidos, durante a II
Guerra Mundial, os historiadores americanos preferem ‘esquecer’,
principalmente nos livros didáticos e, oficialmente, ‘nunca
aconteceram’.
Foi
nesta época que os biólogos alemães tentaram deseperadamente descobrir,
com fins práticos, quais eram as características “raciais” ciganas, já
que na maioria dos casos era impossível distinguir os ciganos do resto
da população alemã através de características físicas específicas. Mas
mesmo Ritter e seus colegas nunca foram capazes de descrever estas
características. Daí porque, na Alemanha daquele tempo, era classificado
como “Z” (de “Zigeuner”), ou seja “cigano puro” todo indivíduo com
quatro ou três avós “verdadeiros ciganos”; como “ZM+” ou mestiço em
primeiro grau era classificado quem tinha menos do que três avós
“verdadeiros ciganos”; “ZM-” era o mestiço em segundo grau que tinha
pelo menos dois avós “ciganos-mestiços”; avó ou avô “verdadeiro cigano”
era aquele que sempre tinha sido reconhecido, pela opinião pública, como
“cigano”. Ou seja, no final das contas tratava-se de critérios
subjetivos, e não científicos. Ritter chegou a classificar “racialmente”
cerca de 25 a 30 mil ciganos alemães, mas a quase totalidade era,
segundo ele, formada por mestiços, ou seja, eram candidatos à
esterilização, confinamento em campos de concentração e, finalmente,
extermínio.
No
início dos anos 40 alguns nazistas intencionavam ainda conservar para a
posterioridade uma “amostra” de Sinti “puros”, melhor dito, oito
famílias Sinti e uma família Lalleri, que seriam confinadas numa espécie
de “reserva cigana” a ser criada na Hungria e administrada pelo
Instituto do Patrimônio Histórico. Esta “reserva cigana” nunca chegou a
se tornar realidade; no final, também estes ciganos “puros” terminaram
nos campos de concentração ou de extermínio. Em 1940, Ritter escreveu
num relatório:
“Fomos capazes de provar que mais do que 90% dos assim chamados ciganos nativos são mestiços...... Outros resultados de nossas investigações permitem-nos caracterizar os ciganos como um povo de origens etnológicas totalmente primitivas, cujo atraso mental os torna incapazes de uma real adaptação social..... A questão cigana só pode ser resolvida reunindo o grosso dos mestiços ciganos associais e imprestáveis em grandes campos de trabalho e mantendo-os trabalhando, e parando para sempre a futura procriação desta população mestiça”.
Para
cada cigano, Ritter emitia então um “Certificado”, assinado por ele
pessoalmente ou por sua assistente Eva Justin, no qual constavam além do
nome e dados pessoais, o grau de ciganidade. Quase sempre o diagnóstico
era: “mestiço cigano”, o que na prática correspondia a uma condenação à
esterilização ou à deportação e internação (e posterior extermínio) em
campos de concentração.
Eva
Justin, na época, era apenas uma simples enfermeira, sem qualquer
formação acadêmica, mas que apesar disto sonhava com o título de Doutor,
e para obtê-lo escreveu uma ‘tese’ sobre a suposta inadaptabilidade
social de crianças ciganas, estudando durante apenas seis semanas um
grupo de crianças ciganas internadas numa espécie de orfanato, sem
contato com seus pais ou outros ciganos adultos. Obviamente chegou à
conclusão que a boa educação recebida neste internato de nada adiantou e
que as crianças continuaram tão associais como antes; para ela,
crianças ciganas eram simplesmente incorrigíveis, eram associais e
criminosos natos.
A
“tese” foi defendida em 1943, na Universidade de Berlim. Poucos dias
após a obtenção do diploma, as 39 crianças ciganas do orfanato, as
cobaias de sua pesquisa e que até então tinham sido poupadas, foram
deportadas para Auschwitz; somente quatro sobreviveram.
A
partir de 1942 os métodos eugenéticos (esterilização e confinamento)
foram substituídos por outro, considerado mais eficiente: o genocídio,
ou seja a eliminação física destas pessoas, nos campos de concentração e
fora deles. Em dezembro de 1942, Himmler ordena enviar todos os ciganos
alemães para Auschwitz-Birkenau, então dirigida por Josef Mengele, onde
foi instalada uma seção com 40 barracas só para ciganos, ordem depois
repetida nos territórios ocupados. Dos 23.000 ciganos internados no
campo de extermínio de Auschwitz, cerca de 20.000 morreram e uns 3.000
foram transferidos para outros campos. Os últimos ciganos de Auschwitz,
conforme a metódica contabilidade alemã exatamente 2.897, foram todos
enviados para as câmaras de gás na noite de 2 de agosto de 1944.
Também
outros campos de concentração receberam ciganos, embora em número menor
do que Auschwitz. Bernadac publica quase três centenas de páginas com
testemunhos de ciganos internados em vários destes campos de
concentração. Nem todos eram campos de extermínio e possuíam câmaras de
gás e crematórios, mas nem por isto eram menos desumanos. Em
Bergen-Belsen, por exemplo, os internos, entre os quais muitos ciganos,
eram lentamente assassinados por inanição, sendo os mortos enterrados em
enormes valas perto do campo. Quando Bergen-Belsen foi tomado pelos
ingleses, em 1945, encontraram cerca de 10.000 corpos ainda insepultos, e
cerca de 40.000 pessoas ainda vivas, das quais pouco depois ainda
morreram umas 13.000, em parte por causa dos maus tratos e doenças
anteriores (em especial o tifo), em parte também por causa da
super-alimentação logo dada pelos bem intencionados ingleses, mas que
muitos dos subnutridos já não conseguiram mais digerir. Fatos
semelhantes foram registrados também em outros campos de concentração.
Exércitos não costumam levar também nutricionistas, e por isso, na
época, ainda não se sabia – ou pelo menos os soldados e oficiais ainda
não sabiam - que pessoas altamente subnutridas também podem morrer por
causa de repentina super-alimentação.
Na
França existiam até campos de concentração somente para ciganos,
administrados pelas próprias autoridades francesas. Não se tratava de
campos de extermínio, mas quase sempre de campos de trabalhos forçados e
por serem campos em geral pequenos, para uma centena até alguns poucos
milhares de pessoas, as condições de vida eram, em geral, melhores do
que nos campos administrados pelos alemães. Bernadac chama estes campos,
apropriadamente, “as antecâmaras francesas de Auschwitz”, porque
principalmente no final da guerra, muitos dos 30 mil ciganos internados
nestes campos franceses foram deportados para os campos de extermínio
existentes na Alemanha e em outros países.
O
tratamento desumano, as terríveis experiências médicas, as câmaras de
gás e os crematórios, e outros tantos horrores cometidos pelos alemães
nestes campos de concentração, supomos suficientemente conhecidos por
todos. Estima-se que 250 a 500 mil de ciganos foram assassinados pelos
nazistas. Os números exatos nunca serão conhecidos, mas todos os
documentos provam que os judeus não foram as únicas vítimas da
perseguição racista pelos nazistas. A única diferença é que o holocausto
judeu, e com justa razão, até hoje sempre costuma ser relembrado e não
faltam memoriais para lembrar isto, inclusive em Auschwitz. O holocausto
cigano, no entanto, costuma ser varrido debaixo do tapete, costuma ser
simplesmente ignorado ou esquecido, como algo de menor importância, ou
pior ainda como algo que nunca aconteceu, e praticamente não existem
monumentos que lembram o holocausto cigano.
A
II Guerra Mundial terminou há pouco mais de meio século. Centenas de
milhares de judeus receberam indenizações do governo alemão, e o povo
judeu recebeu uma Pátria nova (Israel 1948). Os ciganos nunca foram
indenizados e nunca receberam nada, sob a alegação de que foram
perseguidos e exterminados não por motivos “raciais”, mas por serem
associais e criminosos comuns; outros tiveram seus pedidos de
indenização negados porque não conseguiram apresentar os testemunhos
necessários.
Todas
as pesquisas de Ritter e outros sobre as características raciais dos
ciganos, suas medições físicas, suas amostras de sangue, as crueis
experiências biológicas de Mengele com ciganos em Auschwitz, foram de
repente esquecidas. Preferiu-se esquecer ainda circulares oficiais como
uma já de 1938, sobre “O combate à praga cigana”, que afirmava: “A
experiência até agora acumulada no combate à praga cigana e os
resultados da pesquisa biológica-racial mostram que é recomendável
abordar a regulamentação da questão cigana do ponto de vista racial”,
como de fato aconteceu depois.
O
famoso Tribunal de Nuremberg, instituído pelos ‘aliados’ logo após a II
Guerra Mundial para condenar europeus que cometeram crimes contra a
Humanidade, concentrou suas atividades em crimes contra judeus, mas não
há registro de criminosos de guerra condenados por crimes cometidos
contra ciganos. Inúmeros judeus – e com toda a razão – tiveram
oportunidade para apresentar seus depoimentos e suas denúncias, mas
nenhum cigano foi convocado ou aceito para depor ou para denunciar.
Antes
pelo contrário, alguns conhecidos e comprovados criminosos anti-ciganos
(mas não anti-judeus!) foram até promovidos: Robert Ritter e Eva
Justin, por exemplo, foram considerados inocentes e após a guerra
viveram ainda um bom tempo exercendo tranquilamente a profissão! Em sua
defesa foi alegado que os dois nunca mataram pessoalmente um cigano! Que
comprovadamente mandaram dezenas de milhares de ciganos para a morte
com seus pseudo-científicos “Certificados de Ciganidade”, não foi levado
em consideração. Em 1947 a prefeitura de Frankfurt contratou Ritter
como psiquiatra infantil, e no ano seguinte Eva Justin foi contratada
como psicóloga criminal e infantil, para cuidar - imaginem só! - da
re-educação de crianças associais e desajustadas, muitas das quais
certamente vítimas da guerra.
Ainda
hoje o holocausto cigano é pouco conhecido do grande público. Também em
documentários e em comemorações das vítimas do holocausto nazista, ou
em monumentos construídos em sua homenagem, sempre são lembrados apenas
os judeus, e nunca os ciganos. Pelo contrário, mesmo depois da guerra os
ciganos continuaram sendo discriminados da mesma forma, ou talvez até
pior do que antes. Atualmente, no entanto, em livros e revistas que
tratam do holocausto, está se tornando ‘politicamente correto’ falar não
apenas dos judeus, mas também dos ciganos, enquanto também o número de
livros e artigos que tratam do assunto está aumentando sempre mais.
Mesmo
depois da guerra, os ciganos continuaram sendo discriminados da mesma
forma, ou talvez até pior do que antes. Principalmente nos círculos
policiais, todas as antigas ideologias e imagens anti-ciganas
continuaram existindo, pelo que nada mudou também nas atitudes
anti-ciganas, excluindo-se apenas o genocídio. Os ciganos continuaram
pessoas indesejadas e odiadas em toda a Alemanha. Até vários dos assim
chamados ‘ciganólogos’ alemães continuaram publicando ensaios
nitidamente anti-ciganos.
Ainda
hoje, mais de cinquenta anos depois da II Guerra Mundial, pouca coisa
mudou. Na decada de 90, após a reunificação das duas Alemanhas
(Ocidental e Oriental) e o fim da União Soviética, a Alemanha se tornou o
país preferido por dezenas de milhares de refugiados e migrantes do
Leste, entre os quais muitos ciganos, principalmente da Romênia e da
ex-Iugoslávia. Jansen informa que: "de 1989 a 1990, o número de
refugiados vindos da Romênia cresceu mais de dez vezes, de cerca de
3.000 para 35.000. Dois terços deles são Roma. Somente no mês de outubro
de 1992, foram registrados na Alemanha 15.000 refugiados da Romênia".
Em 1992/93 o governo alemão pagou ao governo romeno mais de 25 milhões
de marcos para receber de volta cerca de 50.000 cidadãos romenos, a
maioria dos quais Rom. Ninguém perguntou aos Rom se eles realmente
queriam voltar, e a sua ‘repatriação’ foi compulsória.
Diga-se
de passagem que esta repatriação teve a aprovação também de muitos
Sinti, ciganos com nacionalidade alemã e há muito tempo residindo no
país e quase todos bem integrados na sociedade nacional, porque temeram
que a população os identificasse com os Rom do Leste, segundo eles
responsáveis por todos os estereótipos e preconceitos anti-ciganos. Já
vimos anteriormente que também na Holanda os ciganos holandeses
tradicionais (com nacionalidade holandesa) não gostaram nada da
repentina imigração de Rom do Leste, pelo que inclusive ajudaram o
Governo a contrabandear ilegalmente muitos destes ciganos “estrangeiros”
de volta para algum país vizinho. Comprovadamente, pelo menos na
Europa, os ciganos não somente são odiados pelos não-ciganos, mas também
– e o que é bem mais grave - se odeiam mutuamente.
Inclusive
na Europa do Leste. Segundo Gozdziak, após 1989 muitos Rom romenos
migraram também para a Polônia, um país no qual também, há muito tempo,
existe uma forte discriminação anti-cigana, apesar da qual muitos
antigos ciganos poloneses conseguiram integrar-se no país. Para estes
tradicionais ciganos polonêses, a chegada de milhares de ciganos romenos
apenas piorou ainda mais a situação: "Os Rom poloneses não se
relacionam com os ciganos romenos..... ‘Eles não são meus irmãos’, diz
um rom polonês, ‘... nós somos muito diferentes deles, nós não pedimos
esmolas nas ruas. Nós não somos dependentes de nínguém, Nós conquistamos
aqui nosso espaço. Nossas mulheres são limpas, e as crianças tomam
banho. Nós construimos casas e não dormimos no chão. Os ciganos romenos
nos envergonham’ ". O fato de este Rom identificar os ciganos poloneses
como 'Rom', e os ciganos romenos - sem dúvida alguma Rom - apenas como
'ciganos', é apenas mais uma manifestação de discriminação cigana
anti-cigana, e que, lamentavelmente, existe e foi registrada em
praticamente todos os países.
Vergonha:
talvez seja esta a palavra chave que explique o anti-ciganismo dos
próprios ciganos em países nos quais há séculos residem e que, bem ou
mal, já conseguiram integrar-se na sociedade nacional, que são
sedentários, exercem alguma profissão perfeitamente legal, cujos filhos
estudam, e que não são identificados ou identificáveis como 'ciganos', e
por isso também não são perseguidos e discriminados.
Entende-se
que a chegada repentina de centenas ou milhares de rom orientais
maltrapilhos, famintos, imundos, analfabetos e que, para sobreviver,
vivem mendigando, enganando ou furtando, ou até envolvendo-se em
atividades ilegais como contrabando e o tráfico de drogas, é um pesadelo
e uma ameaça para os tradicionais ciganos não somente na Europa
Ocidental, mas também em alguns países da Europa Oriental, como a
Polônia.
Se
até os próprios Rom pensam assim sobre os imigrantes e refugiados Rom
romenos, (ex) iugoslavos, (ex) tchecoslovacos, albaneses ou outros, não
se pode estranhar opiniões e atitudes ainda piores entre a população
não-cigana. Numa pesquisa de opinião pública realizada na Alemanha em
1992, os ciganos obtiveram o mais alto índice de rejeição: 64%. A
rejeição de outras conhecidas minorias era: muçulmanos 17%, indianos 14%
e judeus 7%.
Grande
também é o número de imigrantes e refugiados da ex-Iugoslávia. Milhares
de ciganos iugoslavos, que desde 1989 tentaram em vão obter asilo na
Alemanha, foram depois compulsoriamente "repatriados" - eufemismo para
"deportados"
É
compreensível que estas massas de refugiados não sejam bem-vindas na
Alemanha, como aliás em nenhum outro país europeu. Afinal de contas, por
causa de tratados internacionais, todos eles devem receber alimentação,
hospedagem, assistência social, assistência médica, etc., ou seja,
devem ser mantidos às custas dos contribuintes não-ciganos. E tudo isto
justamente numa época em que também a quase totalidade dos países
europeus passa por profundas crises econômicas e têm altos índices de
desemprego.
Além
disto, por causa dos preconceitos já existentes, os ciganos migrantes
ou refugiados do Leste quase nunca recebem a devida assistência, e por
isso são obrigados a mendigar, furtar, vender drogas, etc. pelo que os
preconceitos aumentam mais ainda. Porque, obviamente, muitos deles são
presos e terminam nas páginas policiais dos jornais, nas quais costumam
ser identificados como 'ciganos', embora os jornalistas não costumem
informar nada sobre a nacionalidade ou identidade étnica dos outros
milhares de criminosos presos por causa de 'crimes' idênticos ou
semelhantes.
Daí
porque a imprensa não se cansa de noticiar incêndios de residências
ciganas e outras violências contra ciganos e contra outras minorias
étnicas na Alemanha (e em vários outros países europeus), cometidas por
neo-nazistas, skinheads e outros grupos ultra-direitistas, ou a
repatriação forçada, pelo Governo, de milhares de ciganos para seus
países de origem. Na Alemanha de hoje, apesar das belas recomendações
pró-ciganas da União Européia, da qual o país faz parte, a vida dos
ciganos ainda é difícil, e os tradicionais preconceitos e as centenares
discriminações continuam existindo, como antes
Fonte: Nucleo de Estudos Ciganos - Recife - Ano 2000