ALÉM DA LENDA



ALÉM DA LENDA


Texto: Claudio Iovanovitch [cigano matchuaia]
Direção: Neiva Camargo [cigana; esposa de Claudio Iovanovitch]
 
PEÇA TEATRAL CIGANA,
EM UM ATO

[Abertura da cena, com dança indiana (hindú); seguem narração gravada e cena com Nuno tentando, em vão, sair da barraca (transparente), que o aprisiona, após o que ele inicia seu monólogo:]
Qual é meu nome?
- Nuno.
De onde venho?
- Não sei.
O que faço?
- Vivo.
No que acredito?
- Em tudo.
Qual a minha raça?
- Humana.
O que fiz?
- Não, não invadi, não saquei, não expulsei e nem escravizei ninguém.
- Não matei em nome de Deus.
- Nos mataram em nome de Deus.
De onde vim?
- Na inquisição espanhola nossas mulheres foram mortas como bruxas, os homens foram enviados para as galés e suas orelhas cortadas. O último refúgio para um perseguido era a igreja. Mas não para o cigano que mesmo dentro da casa de Deus, não encontrou abrigo. No holocausto não somos nem citados, mas 500 mil ciganos foram mortos. No julgamento de Nuremberg nenhum cigano foi chamado para falar da nossa dor. Entendemos que isto não foi obra de Deus e sim dos homens, que na sua ganância pelo poder deturparam a palavra de Deus.
[Entra a bailarina egípcia, após cuja dança Nuno declama “Sou Gitano”; fundo musical extraído de Carmina Burana, de Carl Orf]
Sou Gitano
Que horizonte é este que rasgo todos os dias
com minhas pegadas,
com as rodas do meu carroção?
Que coração nômade me impulsiona, me guia?
Que ponto cardeal guia a agulha da minha bússola?
Meu sangue não conhece outros caminhos,
senão todos os caminhos do desconhecido.
Meu mundo é todo mundo,
e as fronteiras são riscos em mapas que não existem.
Sou gitano, sou meu norte, meu sul, meu leste e meu oeste.
Sou gitano, e o meu mundo é velho conhecido dos meus olhos.
E Novo Mundo é amanhã e sempre.
Meu pai, meu avô, meu tio,
com suas músicas e anéis,
cruzaram a terra em xis,
na ida e na volta
deixando em cada outeiro berço e jazigo.
Nova pirâmide erguida a cada instância,
vindo de egípcias areais que meus olhos ferrabrases poliram.
Pólux é meu rumo, atlante meu aminhar.
Sou gitano, e meu canto é vida,
minha guitarra lamenta e compassa.
Minha alma trás vidrilho e medalhitas.
Traz esporas, traz touradas, banderilhas.
Meu ancinhar procura mais que ouro.
Quero a farroma e a festa, e não o ouro dos príncipes da terra.
Meu canto não faz reparo a damas ou meretrizes.
O fandango madraço ou vibrante
é o sino que respalda minha igreja.
Minha hóstia é o pão sarraceno,
meu purgatório é o jejum,
meu pecado é nenhum.
Não há quem mate por mim,
não há quem viva por mim.
Que crime cometi?
Não estar na História?
Qual? Na sua História?
- Na sua História fomos expulsos, perseguidos e mortos, sem ao menos saber por quê. Nos seus livros somos sinônimos de errantes, vadios e trapaceiros.
- A cultura do ter tem que respeitar quem quer apenas ser. Um Estado não é só um pedaço de chão, é muito mais que isso. É a forma de ser de cada um. É o seu costume, o seu pensamento. Preservar a cultura não é fazer uma estátua jorrando água. A minha cultura é a minha História. E a sua História não entende a minha cultura.
- Mas eu tenho a minha História.
Mas participamos também da sua História,
nas embarcações sobre os rios e mares que vocês cruzaram.
[Em gravação, é declamada uma poesia, em espanhol, sobre as embarcações nas galés. Depois Nuno continua:]
- A sua bandeira não é mais bonita do que a dele. O seu hino é tão bonito quanto o dele.
A globalização que vocês impõem é enfiada goela abaixo apenas com o propósito econômico. A nossa globalização é o nosso costume, a nossa cultura. Na globalização de vocês, vocês ouvem a mesma música, cheiram o mesmo perfume, comem o mesmo sanduíche e calçam o mesmo tênis. Tudo isso para ganhar mais dinheiro.
Claro que fomos omissos, o nosso anonimato deixou os seus famosos – Brahms, Liszt ouviram nossas músicas e se apoderaram. Até as nossas danças, dizem que são suas.
[Entra em cena a dançarina flamenca, após cuja dança Nuno continua:]
- Não, não estamos na sua História.
Não, não sabemos desenhar suas letras.
O seu calendário não é o meu.
A sua geografia não é a minha.
Não entendemos a sua língua,
mas procuramos aprender.
Sim, somos os índios da Europa.
Nossa História está na nossa memória,
na nossa música e na nossa dança.
Nossa fala não tem desenhos.
A nossa língua é nossa Pátria.
E nossa língua é todas as línguas.
Quando estamos alegres ou tristes, dançamos.
[Entra em cena a dançarina cigana, ao som de um tzardás, após o que Nuno continua:]
- Não queremos o ouro nem as terras dos reis, pois quando se morre talvez tenha sido melhor ter sido cigano do que rei.
Nós refletimos a sua liberdade, a sua esperança no amanhã .....
Viva cada dia percebendo o que a natureza lhe oferece.
A cada amanhecer você tem diante dos seus olhos um espetáculo maravilhoso e que muitas vezes você nem vê.
Não somos só um sonho, nós participamos da sua História, sem armas ou fazendo guerras, mas na alegria, na música, na dança, pois todos vocês têm um pouco de ciganos.
[Entram em cena a dançarina cigana principal, e mais duas ciganas co-adjuvantes, executando danças ciganas, após o que Nuno continua:]
- Os olhos azuis brilham tanto quanto os olhos verdes, ou até os olhos negros. Até derramam lágrimas iguais!
Vocês dividem as pessoas em cores!!!
Brancos, amarelos, vermelhos e negros.
Dividir as pessoas em cores .............
Seria como se nós quiséssemos dividi-los por música, ou por dança.
Que estupidez ........ !
Eu acho todas as cores lindas; todas juntas formam um grande arco-íris.
A glória, a fama para nós, não é importante, pois queremos SER e não apenas TER.
QUEREMOS APENAS SER LIVRES, LIVRES COMO O AR, LIVRES COMO O VENTO, LIVRES COMO AS ESTRELAS NO FIRMAMENTO.
[Nuno rompe a parede da barraca e, finalmente, está livre. Entra inicialmente a dançarina cigana que com ele dança, ao som de uma música dos Gypsy Kings; depois entram em cena as duas outras ciganas, e finalmente todo o elenco da peça. ]
FIM