Associação
Brasileira de Antropologia - ABA
Os Ciganos e as Políticas de Reconhecimento:
Desafios Contemporâneos
Os ciganos são a minoria étnica mais
vulnerável à discriminação nos 27 Estados membros da União Européia, de acordo
com agências internacionais. Considerados "hóspedes indesejados" em
diferentes países e continentes, os ciganos convivem secularmente com o
preconceito, a estigmatização e a exclusão social, sobretudo por sua recalcitrante
mobilidade e por seu modo de vida particular. Apesar dos "golpes da animosidade"
e do "abraço forçado da assimilação", são cada vez mais expressivos
os movimentos dos ciganos, tanto na Europa quanto no Brasil, de luta por
reconhecimento. Apesar das dificuldades enfrentadas, vêm sendo propostas
políticas de inclusão dos ciganos, como atestam os recentes esforços
governamentais com o objetivo precípuo de responder às suas demandas e dar
conta de suas especificidades culturais no Brasil. Medidas concretas contra a
discriminação do grupo vêm sendo discutidas e adotadas, buscando compreender a
complexidade de sua inserção no “mundo dos gadjé”
(ou seja, dos não-ciganos), as implicações de seu nomadismo e promover ações positivas
no combate ao racismo, à pobreza e à desigualdade. Diante das instituições do Estado,
a vindicação de direitos à educação, à saúde, à habitação, ao trabalho, à
justiça e à cidadania plena fornece um interessante quadro de análise para a
antropologia política, sobretudo diante da recusa sistemática desse grupo
étnico a uma base territorial, ou seja, ao formato estatal em plena
modernidade.
Em 25 de maio de 2006, o Presidente Luiz
Inácio Lula da Silva assinou um importante decreto instituindo o Dia
Nacional do Cigano no Brasil. O estabelecimento, pelo Governo
Federal, do dia 24 de maio como data comemorativa inscrita no calendário
oficial é parte de uma série de medidas destinadas especificamente a essa minoria
étnica, recentemente adotadas pelas Secretarias Especiais de Políticas de Promoção
da Igualdade Racial (SEPPIR) e dos Direitos Humanos (SEDH) da Presidência da
República.
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA - CASA CIVIL -
SUBCHEFIA PARA ASSUNTOS
JURÍDICOS
Decreto de 25 de Maio de 2006: Institui o Dia
Nacional do Cigano.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA,
no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso
II, da Constituição,
DECRETA:
Art. 1o Fica
instituído o Dia Nacional do Cigano, a ser comemorado no dia 24 de maio de
cada ano.
Art. 2o As
Secretarias Especiais de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e dos
Direitos Humanos da Presidência da República
apoiarão as medidas a serem adotadas para
comemoração do Dia Nacional do Cigano.
Art. 3o Este
Decreto entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 25 de maio de 2006; 185o
da Independência e 118o da
República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Dilma Rousseff
A criação de uma efeméride singularizando os ciganos
revela um gesto positivo
de reconhecimento público inédito no concerto
das nações modernas, destacando sua importância na formação histórica e
cultural da identidade brasileira. Teve como grande artefato simbólico, na
ocasião da primeira celebração da data, em 24 de maio de 2007, o selo
comemorativo lançado oficialmente no Salão Negro do Palácio da Justiça, diante de
líderes ciganos vindos de todas as regiões do Brasil.
Designados pela presidência da Associação
Brasileira de Antropologia para representá-la no importante acontecimento,
participamos da programação envolvendo não só as primeiras obliterações do selo
comemorativo da data, como também o anúncio de outras iniciativas ministeriais
referentes às políticas de inclusão destinadas ao grupo, tais como o lançamento
do Prêmio Culturas Ciganas 2007 – Edição João Torres,
pela Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural do Ministério da
Cultura (SID/MinC). Nessa oportunidade, fizemos contatos com representantes dos
subgrupos ciganos Rom (do Leste Europeu) e Calom
(oriundos da Península Ibérica, desde o século XVI no Brasil)
vindos do Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais,
Goiás, Bahia, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, entre outros Estados
da Federação.
Tendo em vista nossa manifestação de
interesse, a propósito da relevância política da ocasião, fomos convidados a
participar de duas reuniões na SEPPIR, com o intuito de ampliar para os
ciganos, enquanto minoria étnica, os eventuais benefícios da colaboração já
existente entre a ABA e os órgãos públicos federais voltados para populações
indígenas e comunidades remanescentes de quilombos, no quadro da Política
Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades
Tradicionais.
Criada em 21 de Março de 2003, a SEPPIR
surgiu com o propósito específico de promover ações afirmativas que pudessem
reverter o histórico preconceito racial contra a população negra, como forma de
viabilizar as políticas de cotas, incrementar o apoio sistemático às
comunidades quilombolas e ampliar os laços político-culturais BrasilÁfrica. Na
comemoração do Dia Nacional do Cigano, a então Ministra Matilde Ribeiro afirmou
publicamente que, ao assumir a SEPPIR, não tinha idéia da complexidade das questões
que estavam envolvidas quando se falava em grupos étnicos e minorias. Não imaginava,
pois, se deparar com uma feérica explosão das diferenças, diante do processo de
redemocratização e da reconstituição dos movimentos sociais, ensejados pela
Constituição de 1988, a “constituição cidadã”.
Desse modo, além das demandas do movimento
negro, diversas outras minorias e grupos étnicos buscaram a SEPPIR. Entre eles,
judeus e ciganos,
povos degredados e discriminados há séculos na Europa e no Brasil; palestinos
e chineses, clamando por
asilo político; e pomeranos, que
conservaram aspectos do idioma e do estilo de vida da Alemanha rural
novecentista, em pleno Sul do Brasil. Esses grupos fizeram com que a
SEPPIR, por sua competência específica como
Secretaria Especial diretamente ligada à Presidência da República, repensasse
sua agenda política e se visse compelida a expandir sua atuação para outros
segmentos da sociedade brasileira. Entre esses novos sujeitos políticos, no
entanto, aqueles que mais desafiavam a imaginação dos formuladores das
políticas públicas eram os ciganos. Traziam uma demanda qualificada e surpreendente,
sobretudo por suas inusitadas formas de organização e de associação, por sua
rápida capacidade de mobilização e por sua expressiva articulação internacional,
de todo inesperada para o staff do
Ministério. Telefonemas de órgãos públicos e militantes políticos de diferentes
países, nas maisdiferentes línguas, passaram a demandar quadros cada vez mais
qualificados da própria
SEPPIR, transformada num verdadeiro foyer
d’appel permanente e transnacional.
Como se não bastasse, quando confrontados com
a eventual proposição e implementação de medidas, agentes governamentais
acostumaram-se a se endereçar à figura emblemática do representante, daquele
que fala em nome de todos, do líder que representa corporificando
o interesse coletivo. Quando vêm para as arenas públicas, no entanto, se
evidenciam as vigorosas clivagens, as segmentações e a significativa dispersão
dos diferentes grupos ciganos, com sua profusão de redes em rizoma e alianças
inesperadas, de estilos inusitados e oposições quase inconciliáveis na diferenciação
interna dos grupos. Por vezes a expressão dos sentimentos morais, a demanda por
respeito e o clamor por reconhecimento cedem lugar às rivalidades cultivadas,
divisadas no requinte dos traços diacríticos dos subgrupos, requerendo modos
eficazes de administração e resolução do conflito nem sempre conhecidos dos gadjé.
Durante as conversações mantidas na SEPPIR,
assessores e técnicos foram unânimes em explicitar as dificuldades encontradas
no trato da questão, pois não dispunham dos indispensáveis subsídios para
melhor conhecer o inquietante e até então fugidio universo no qual deveriam
atuar no exercício da função pública e no cumprimento da agenda política
consubstanciada na própria existência especial da Secretaria. Logo então se
depararam com outras dificuldades: aos conflitos internos pervasivos, vinham
associar-se a precariedade e pouca confiabilidade das informações disponíveis
sobre os ciganos no Brasil, a carência de dados qualificados sobre as características
da população e sua distribuição no território nacional, diante dos desafios da
mobilidade dos grupos e da ausência documental que configura o chamado “subregistro
civil”.
Além disso, a consulta aos órgãos de fomento
e aos bancos de tese de nossas
instituições de ensino e pesquisa revelou à
equipe técnica uma incipiente produção acadêmico-científica dedicada aos
ciganos no Brasil – seja em sua dimensão histórica, econômica, política,
sociológica ou artístico-cultural. Isso vinha dificultar mais ainda a formação
de uma massa crítica que pudesse assegurar aos agentes dos órgãos federais uma
interlocução qualificada. Interlocução que lhes permitisse compreender, equacionar,
gerenciar e atender satisfatoriamente às demandas crescentes desses grupos.Durante
as conversas na SEPPIR, evidenciadas tais lacunas, a estratégia que lhes ocorreu
foi identificar os pesquisadores em âmbitos nacional e internacional, para
reunilos em dois seminários temáticos. Com isso, pretendia-se não somente obter
um conjunto de dados e referências precisas que lhes pareciam incontornáveis
para a condução eficiente dos trabalhos que se acumulavam, mas também dar
visibilidade internacional às expressivas ações do governo brasileiro na
implementação de políticas públicas dirigidas aos ciganos. As recentes mudanças
ocorridas na estrutura ministerial levariam, no entanto, à não-concretização
dessas iniciativas no âmbito federal e, conseqüentemente, à interrupção dessa
pauta de discussão ainda em gestação.
Entretanto, a idéia de um encontro
internacional sobre os ciganos e as políticas
de reconhecimento foi acolhida
entusiasticamente pela ABA, nas pessoas de seu Presidente, Prof. Luís Roberto
Cardoso de Oliveira, e seu Vice-Presidente, Prof. Roberto Kant de Lima.
Propusemos então organizar inicialmente uma Mesa Redonda, logo transformada em
Simpósio Especial, na 26ª. Reunião Brasileira de Antropologia em Porto Seguro
(BA), com vistas a estimular e fomentar a importante discussão, almejando a
constituição futura de um Grupo de Trabalho identificado com o tema.
Como primeiro evento inteiramente dedicado
aos ciganos promovido pela Associação Brasileira de Antropologia, o Simpósio
Especial Os Ciganos e as Políticas de Reconhecimento:
Desafios Contemporâneos constitui mais um passo significativo
no âmbito da comunidade dos antropólogos
brasileiros, em favor do exercício pleno da cidadania,
da afirmação da dignidade humana, do direito ao respeito e ao
reconhecimento das diferenças em nosso País. Pois, como escreve o
antropólogo Marc Bordigoni, “il n’y a
pas des Tsiganes qui ne vivent dans un univers autre, c’est-à-dire au
contact de ce qu’ils appellent le monde des gadjé.”
Marco
Antonio da Silva Mello &
Felipe
Berocan Veiga
PPGA/ICHF-UFF e LeMetro/IFCS-UFRJ