Verdade seja dita. Desde 2009, uma importante
fonte de dados sobre os povos romani (ciganos) no Brasil é a Pesquisa de Informações
Básicas Municipais – Perfil dos Municípios Brasileiros (MUNIC), do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE). A MUNIC tem periodicidade anual e abrange o
universo das prefeituras dos 5.561 municípios brasileiros. Em 2010 esta pesquisa
não foi realizada, em razão da prioridade dada ao Censo Demográfico. Porém, em 2009
e 2011 a MUNIC levantou dados inéditos sobre os povos romani no Brasil, pois incluiu
perguntas sobre a existência de acampamentos ciganos nos municípios e sobre a
implementação de políticas públicas municipais para este segmento.
Parece
pouco. Afinal, com estas perguntas, a MUNIC levantou dados sobre uma realidade
que, atualmente, atinge segmentos minoritários dos povos romani, ou seja,
grupos que ainda vivem acampados. Aliado a isso, há o problema da
subnotificação, pois a coleta dos dados da MUNIC é feita em consulta aos gestores
e gestoras municipais. Porém, com estas perguntas a MUNIC revelou um retrato
sem precedentes da presença dos povos romani no Brasil e tornou possível uma
primeira aproximação de uma realidade ainda pouco conhecida no âmbito da gestão
pública e da sociedade em geral.
Em
2009, a MUNIC revelou a existência 290 acampamentos ciganos em municípios
distribuídos em 21 unidades da federação (UF). Em 2011, foram identificados 291
acampamentos ciganos localizados, da mesma forma, em municípios distribuídos em
21 UF. A MUNIC revelou, ainda, que a maioria destes acampamentos se localiza em
municípios com população de 20 a 50 mil habitantes, e com uma maior
concentração nos estados da Bahia, Minas Gerais e Goiás. Em 2011, a MUNIC
demonstrou também a existência de um considerável déficit em termos de
implementação de políticas públicas para os povos romani. Apenas 40 dos 291
municípios com acampamentos ciganos desenvolviam algum programa ou ação para
este grupo étnico – o que corresponde a 13,7% do total – e apenas 29 dos 291 municípios com acampamentos ciganos possuíam área pública destinada para este
fim, ou seja, pouco menos de 10% do total. Lembramos que a garantia das
condições básicas para a realização de acampamentos ciganos em todo o
território nacional é uma das ações do Programa Nacional de Direitos Humanos
III (PNDH), instituído por Decreto Presidencial em 2009.
Todas estas informações foram geradas a partir do trabalho
de análise dos microdados da MUNIC, realizado de forma inédita pela
AMSK/Brasil, e publicizadas pela primeira vez durante o Ciclo de Debates – Ciganos: uma história invisível, ocorrido em
Brasília-DF em abril de 2012. Possuem um valor inestimável, na medida em que
mostram as lacunas existentes hoje em termos de políticas públicas para os
povos romani em nosso país, oferecendo uma importante orientação para a atuação
do governo federal e dos governos estaduais e municipais.
Na
expectativa de dar seguimento à construção desta série histórica a partir dos
dados da MUNIC, a AMSK/Brasil se debruçou sobre os recentes resultados da MUNIC
2012, divulgados pelo IBGE em julho de 2013. Porém, na contramão de todos os
avanços que vêm sendo observado no âmbito das políticas públicas nos dois
últimos anos, nos deparamos com a retirada das perguntas referentes a
acampamentos ciganos do questionário desta pesquisa.
Além
deste enorme retrocesso, neste mesmo período constatamos a perda de mais uma
oportunidade inédita de coleta de dados nacionais sobre os povos romani no
Brasil. A Pesquisa de Informações Estaduais – Perfil dos Estados Brasileiros
(ESTADIC), também realizada pelo IBGE, no ano de 2012 incluiu um bloco de
perguntas sobre ações desenvolvidas pelos governos estaduais no tema da
inclusão produtiva. Neste bloco, importantes informações sobre as políticas de
educação, qualificação profissional e intermediação de mão-de-obra,
empreendedorismo e microcrédito foram coletadas. A partir da parceria com o
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) foi incluída uma
lista dos possíveis grupos para os quais as ações de inclusão produtiva são
direcionadas, seguindo como orientação as categorias adotadas no Cadastro Único
de Programas Sociais (CadÚnico), inclusive aquelas relativas aos grupos
populacionais tradicionais e específicos. Porém, nos surpreendeu a não
inclusão, nesta lista, de importantes segmentos populacionais já identificados
no CadÚnico, dentre eles os povos romani e as comunidades de terreiro. Os dados
sobre esses importantes segmentos cairão, mais uma vez, na vala comum do item
“outros grupos”. A perda desta oportunidade de coleta de informações
fundamentais sobre os povos romani – e, neste caso, também sobre as comunidades
de terreiro – se deu por razões que sequer temos condições de pontuar, pois a
inclusão destas categorias poderia ser feita sem qualquer custo adicional para
a execução da pesquisa.
Em
diversas oportunidades a AMSK/Brasil destacou a importância da inclusão das
famílias ciganas como uma categoria no CadÚnico, dentre os denominados “grupos
populacionais tradicionais e específicos”. A inclusão desta categoria no
CadÚnico tem propiciado a oportunidade de gerar dados importantíssimos sobre as
comunidades ciganas mais pobres e mais vulneráveis a diferentes violações de
direitos. Exaltamos a importante ação do MDS de elaboração do Guia
de Cadastramento de Grupos Populacionais Tradicionais e Específicos, um
material de capacitação de gestores públicos que visa fortalecer a Busca Ativa
e o processo de cadastramento destes grupos, contribuindo para seu acesso a
todo um conjunto de programas sociais do governo federal. Mais do que isso,
essa publicação contribui fortemente para o reconhecimento das famílias ciganas
como beneficiárias de políticas públicas, e os homens e mulheres de etnia
cigana como sujeitos de direitos.
Neste ano de 2013, nos deparamos com enormes avanços com relação ao reconhecimento dos povos romani como parte do conjunto de cidadãos e cidadãs brasileiras. Estes avanços revelam o compromisso e a capacidade de resposta do Estado brasileiro a uma demanda que, em países da União Européia, levou cerca 40 anos para ser atendida. O Brasil tem hoje a oportunidade de criar modelos de inclusão e respeito aos povos romani e se destacar, mais uma vez, no nível internacional nas discussões sobre a superação do racismo e a promoção da igualdade racial e étnica. Porém, para que este enorme potencial se concretize, a omissão, o desconhecimento e as dinâmicas de racismo institucional necessitam ser superadas e colocadas sob constante vigilância para que seus efeitos perversos sejam coibidos.
Neste ano de 2013, nos deparamos com enormes avanços com relação ao reconhecimento dos povos romani como parte do conjunto de cidadãos e cidadãs brasileiras. Estes avanços revelam o compromisso e a capacidade de resposta do Estado brasileiro a uma demanda que, em países da União Européia, levou cerca 40 anos para ser atendida. O Brasil tem hoje a oportunidade de criar modelos de inclusão e respeito aos povos romani e se destacar, mais uma vez, no nível internacional nas discussões sobre a superação do racismo e a promoção da igualdade racial e étnica. Porém, para que este enorme potencial se concretize, a omissão, o desconhecimento e as dinâmicas de racismo institucional necessitam ser superadas e colocadas sob constante vigilância para que seus efeitos perversos sejam coibidos.
No
ponto em que estamos não podemos permitir retrocessos. A exclusão das perguntas
referentes a acampamentos ciganos e a políticas públicas direcionadas para este
segmento da MUNIC 2012 gerou uma lacuna de informação e ocasionou a não
captação de dados que certamente revelariam importantes avanços com relação às
políticas públicas municipais para os povos romani, bem como os desafios que
ainda persistem nesta área. Da mesma forma, a não inclusão dos povos romani
entre os segmentos da população listados na ESTADIC 2012 gerou a não captação
destes mesmos avanços e desafios no nível da gestão estadual.
Lembramos que o Brasil teve uma atuação destacada na
III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial a Xenofobia e
Intolerância Correlatas, realizada em Durban, em 2001 e o Programa de Ação nascido
desta Conferência afirma a importância da geração de dados como
um aspecto fundamental para a superação da discriminação racial e do racismo.
Lembramos, ainda, que o Brasil tem sido reconhecido internacionalmente por sua
capacidade de gerar dados desagregados por cor, raça e etnia, e que estes dados
têm feito uma diferença fundamental no processo de elaboração de políticas
públicas para milhões de brasileiros e brasileiras.
Não podemos esquecer que quando discutimos estatísticas, não se trata apenas da apresentação de taxas e percentuais. Quando discutimos estatísticas, estamos falando de pessoas, de cidadãos e cidadãs, e sobre a possibilidade de conhecermos melhor suas condições de vida e suas necessidades. Não se trata apenas de números, mas de vidas e de oportunidades. Este Brasil de tantas cores e raças é também um Brasil Romani, e é urgente que esta realidade seja desvelada.
Fotos:
Foto 1: Mapa que localiza os acampamentos ciganos identificados pela MUNIC 2009 e divulgado pelo IBGE.
Foto 2: Abertura do evento Brasil Cigano: I Semana Nacional dos Povos Ciganos, realizado em Brasília, em maio de 2013, e que contou com a presença de representações do governo federal, incluindo a Ministra Luiza Bairros, da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.
Foto 3: Participantes do evento Brasil Cigano seguram a bandeira cigana - ciganas e ciganos, roms e calóns.